Eu Sou Maria
Antagonismos estereotipados, complexidades simplificadas
Por Paula Hong
Festival do Rio 2023
Num sistema econômico cujo acesso à educação, moradia, alimentação e lazer, enfim, qualidade de vida, é constantemente reforçado pelo mérito e não pela distribuição igualitária de oportunidades e acesso, é com muita tristeza que o filme “Eu sou Maria” se coloca à disposição de abordar a história de uma adolescente negra da favela do Rio de Janeiro que tenta ascender na vida através dos estudos, inevitavelmente enfrentando dificuldades num ambiente de adolescentes privilegiados, mas acaba por simplificar o complexo que a rodeia com um didatismo que se perde quando transforma dilemas sociais de seu cotidiano em mais um drama juvenil ingênuo à lá Malhação, reforçado pela presença de atores e personagens conhecidos no círculo televisivo.
A estética adotada tenta seguir à risca o método didático da narrativa: as situações são exageradamente fabricadas, de modo que a fluidez dos acontecimentos parecem picotados, a trilha sonora que antecipa sentimentos e carga dramática atrelada à iluminação policromática são igualmente demarcadas, deixando pouco ou nenhum espaço para que o público seja capaz de assimilar espontaneamente o subtexto dos diálogos (se houvesse algum, tendo em vista o caráter expositivo do roteiro) e das bricolagens cinematográficas. As atuações são, em sua maioria, rígidas, e parecem que acontecem num bate-volta mecânico em que um ator dá a fala e espera o outro terminar a dele para voltar a falar.
Talvez um dos aspectos mais decepcionantes do novo longa-metragem de Clara Linhart seja a escolha deliberada — já que tudo parece tão propositalmente conduzido — de criação de problemas com fácil solução, sem ligação de causa e efeito ou, pior, inconsequente, inconstante, de modo que a resolução dos sérios problemas que permeiam a realidade de Maria (Nubia Mauricio), personagem principal, recai sobre ela, uma adolescente de 15 anos, para resolver, com uma autonomia pouco verossímil à realidade brasileira, se aproximando muito mais de uma fórmula amplamente explorada em filmes estadunidenses.
Se com isso a intenção foi de passar a mensagem de que várias crianças e adolescentes semelhantes à Maria são obrigados a crescerem mais rápido, sobretudo pelas adversidades infelizes da realidade, então isso não foi realizado com a seriedade devida, pois o desenrolar dos acontecimentos são mais um chamado à aventura, com uma leveza simplória e idealizada que não cabe na proposição do universo — claramente calcado na realidade do Brasil — apresentada do filme. Embora o cinema forneça a criação de futuros possíveis, onde a projeção do ideal inspire ações práticas de remodelação da realidade, “Eu sou Maria” distancia-se de se agregar como mais uma obra a essa possibilidade, em especial pelo alcance positivo que poderia ter no público adolescente.
Para além disso, há personagens introduzidos no começo do filme para sumirem, e de repente voltar à órbita da personagem principal, para então cumprir a sua função pontual dentro da narrativa. A história constantemente reforça a polarização do binarismo antagônico das características muito superficiais dos personagens; o bom e o mal, o rico e o pobre etc. Os alunos do prestigioso Colégio Ascensão, no qual Maria e outro amigo do mesmo círculo de convivência na favela entram através de uma bolsa, não aprendem, pouco estudam, usam e vendem drogas, fazem sexo, traem, engravidam, depois abortam, praticam bullying, racismo, agridem verbalmente, acentuam preconceitos, desrespeitam professores, brigam fisicamente e, mesmo assim, não são expulsos, não sofrem represálias. Nada.
Eventualmente, o seu lugar na escola e o foco em estudar acabam por fazer com que Maria adentre o círculo social da classe média alta desses estudantes, mas não consegue estourar a bolha/panelinha das amizades e, mesmo assim, ganha uma respeitabilidade e aceitação mediana. Isso não fica muito claro como acontece, exceto por enfrentamentos e um bate-boca aqui e ali, como se suas falas tristemente didáticas magicamente mudassem a mentalidade daqueles que a rodeiam. Ela tenta fincar raízes na escola pelo merecimento adquirido através da bolsa, mas o interesse inicial pelos estudos parece se dissipar e desviar pelas intrigas da convivência adolescente.
Os enlaces românticos incluídos na narrativa são, sinceramente, descartáveis, sobretudo quando um garoto rico da escola (dotado de uma consciência de classe fora da realidade) parece cumprir o papel de white savior mirim, sendo um dos facilitadores das conquistas de Maria. Com isso, a passagem do tempo e a mudança desses processos são resultados de uma fabulação que se opõe a ressaltar os esforços genuínos de Maria.
Por fim, “Eu sou Maria” constrói uma estereotipada colisão de mundos opostos do Rio de Janeiro. A personagem principal, uma adolescente de 15 anos, está sob o encargo de resolver e mediar conflitos que caberiam a uma conversa entre adultos; “obstáculos para jovens pobres” resumidos a intrigas de adolescentes e escassa supervisão parental. Suas conquistas e sucessos parecem depender da boa vontade do outro. Em consequência, o filme perde muito por se propor a abordar pautas insurgentes com uma visão simplista e leve demais na retratação de assuntos bastante complexos para receber tal roupagem.