Está Tudo Bem
Bem até demais
Por Pedro Mesquita
Festival de Cannes 2021
Emmanuèle (Sophie Marceau), uma mulher de meia idade, escritora, trabalha em seu escritório domiciliar. Imageticamente, a composição é perfeitamente equilibrada, quase estática; sonoramente, o ambiente é praticamente silencioso: eis um retrato da plenitude. Até que uma notícia interrompe toda essa calmaria: o seu pai octogenário, André (André Dussollier), acaba de ser internado num hospital, vítima de um AVC. A sua situação é grave e lhe deixa diversas sequelas: André não tem mais a força ou a coordenação motora para realizar tarefas básicas do cotidiano.
Esta é a situação oferecida por “Está Tudo Bem”. A nova obra de François Ozon, ao falar dos derradeiros instantes de uma vida, opta por uma mise en scène pautada num certo grau de realismo: o filme evita embelezar o retrato de um período da vida que não pode ser outra coisa que desagradável. Durante praticamente todo o resto da projeção, o filme se passará num hospital, onde André fica hospedado a fim de se recuperar. São encenadas de maneira muito crua e direta todas as dificuldades desse momento da vida, em que as mais básicas tarefas se tornam verdadeiras batalhas: o velho homem tem dificuldade para comer, para se locomover; faz suas necessidades involuntariamente… e tudo isso é capturado pela câmera, que, sempre que possível, se aproxima bastante do corpo de André Dussollier para capturar a fisicalidade de sua interpretação.
A propósito da atuação de Dussollier, observemos como ela destoa um pouco do estilo clássico-realista que o filme toma por regra. Justamente nesses momentos que a câmera se aproxima dele, tornam-se visíveis as transformações operadas no rosto do ator para a realização do papel: a maquiagem é pesada, o olho e a boca são artificialmente repuxados. Ozon certamente objetivou a escalação de um ator levemente mais jovem que a personagem que ele interpreta, pela possibilidade de conferir-lhe uma certa energia que um real octogenário poderia não possuir. A atuação é, apesar dos pesares, bastante viva e até mesmo cômica em certos momentos; “Está Tudo Bem” também não é um filme de todo melancólico.
Vale, inclusive, a título de curiosidade, compará-lo com outro grande filme francês sobre esse mesmo processo de assistir à morte de um pai. “Ferida Aberta” (1974), de Maurice Pialat, também representa os últimos dias de vida de um dos pais da personagem principal, com uma interessante diferença: se o filme de Pialat é marcado por uma sensação de absurdo que permeia todo o filme — a morte, então, seria um evento arbitrário, do qual não se consegue extrair um significado exterior que a redima; ela é restituída no seu estado mais bruto, em que só subsiste a sensação de vazio deixada pela perda —, o filme de Ozon retrata a morte como o fechamento de um ciclo, que as personagens conseguem, com o tempo, racionalizar como algo positivo (André morre em paz; as filhas eventualmente aceitam a sua ausência e parecem até aliviadas ao final).
Outra diferença fundamental se dá na natureza da morte, evidentemente. Em “Está Tudo Bem”, André, sabendo que não há possibilidade de retomar um padrão de vida mais saudável, acaba por optar pelo suicídio assistido. Isso se torna objeto de disputa entre a família, que rejeita a decisão, mas o seu tom é tão resoluto e sereno que as pessoas à sua volta acabam aceitando aquele destino como o melhor possível. Nesse sentido, o desenvolvimento narrativo do filme é absolutamente regular, sem declives ou desvios: André nunca muda de ideia ou considera a possibilidade de desistir. Acaba que temos um filme muito mais sobre a reação da família à sua morte do que sobre a própria personagem que morre.
O que “Está Tudo Bem” encena, afinal de contas, é o processo de luto antecipado das filhas de André, que tomam consciência da morte do pai antes mesmo que ela aconteça. Este é, portanto, menos um filme sobre o dilema moral do suicídio assistido que um filme sobre o luto. O que ele tem para oferecer não é nada muito distinto, seja a nível temático, seja a nível estético; Ozon evita as grandes discussões que o assunto poderia suscitar e evita o melodrama — gênero no qual ele já se aventurou em obras passadas — para entregar um filme perfeitamente funcional, agradável e em certa medida comovente, mas pouco marcante. O cineasta francês, que em certo momento de sua carreira fez jus ao rótulo de provocador, hoje decidiu jogar seguro.