Escasso
Sim, nós temos casas
Por Ciro Araujo
Festival de Brasília 2022; Festival do Rio 2022
Quando Glauber decidiu lançar seus manifestos sobre a fome, sob qual ótica desejou aplicar? O cinema novo brasileiro, que por muitas vezes já foi acusado de parâmetros burgueses, alçou ecos que difundiram no contemporâneo, no qual hoje o gênero é (com perdão ao trocadilho) fluido. “Escasso”, curta-metragem de Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles, mesmo que não se atenha textualmente a Rocha, pertence a uma classe cinematograficamente herdeira da raiva da estética.
O mockumentary, ou falso documentário, que seja seu nome, está encravado através do que Clara e Gabriela decidiram pingar nas telas. Uma sequência de eventos nas quais representam indignação, raiva, piada, canalhice. Esta última, por sinal, que define bem o cânone brasileiro e toda sua tendência estimulante. Somos – ainda bem – herdeiros de uma especificidade. “Jeitinho brasileiro”? Faz parte para ajeitarmos essas inadequações sociais. “Escasso” faz parte dessa conceitualização, que procura reiterar “simples” absurdos da vida. Quando em paralelismo com suas atualidades, vemos o espelho provocado. Debates das aplicações de lei, a popularidade de militantes, como Guilherme Boulos, quando envolvido com o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). Essa simbiose natural provocada, expande o caráter do curta.
E claro, um cinema de invenção. Jairo Ferreira, irônico como sempre e ruidoso como nunca, sempre manifestou essa junção natural dentro do brasileiro. Seu jogo de palavras, sua ironia. Tudo isso é assimilado pelo curta de Clara Anastácia e Gaia, que aproveitam também de um timing excelente onde o humor carioca e seu sotaque formam protagonismos quando se é necessário. Corpo, moda, humor. Todos se conversam para finalmente finalizar na Eztetyka da Fome. Aqui, diferente da época, representado por mulheres, uma delas negras, na qual possui a lança para perfurar a tela. Então, quebras da parede ocorrem.
A vontade da fotografia granulada, simulando película, é formidável. O cerne de se diminuir valores de produção – que, de fato, foram baixos – está também em criar uma crueza fílmica. Está ali e lá está, veja bem, pois foi filmado, montado, continua com seus erros e se sente bem com eles. Erros, que mesmo roteirizados e repetidos no gênero de pseudo-documentário (olha aí, mais um nome), funcionam. Existe um aterramento gigantesco da produção de “Escasso”, que está próximo inclusive de influenciadores e humoristas como Diego Defante e Casimiro. Mas, aqui, está aplicado através da raiva inerente do brasileiro, e especificamente do carioca, em traduzir sentimentos de literalmente escassez, para o cinema popular. A comédia, que aqui é conhecida como populesco, barato, de nada é. As mínimas sacadas simplórias são inerentes à uma fluidez estética que deseja adicionar ao que foi retirado. Nesse caso, um maximalismo medonho da parte das diretoras. É, sem dúvida alguma, um curta muito inventivo.