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Ervas Secas

Você nunca sabe onde encontrará significado

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Cannes 2023

Ervas Secas

É quase óbvio dizer que cada cineasta enxerga sua cidade natal de uma forma. Esse olhar pessoal é atravessado pela impressão de um passado subjetivo, que age incisiva e diretamente em um presente mais projetado,  simulado com mais realismo e com mais distância de certas emoções mais dramatizadas e sentimentais (estas advindas de seus costumes tradicionais e comportamentais), especialmente quando se busca mesclar a vida já naturalizada e de ações simples dos moradores locais. E se em algum momento, suas vidas aparentarem ser alteradas com a chegada de um conhecido após “férias”, este que já não pertence a este lugar “buraco” de “paisagem sem vida e imóvel”, que “distorce pensamentos”, tudo ao redor continuará o mesmo sem se importar com nada isso. O realizador turco Nuri Bilge Ceylan gosta muito de se enveredar por esses caminhos. Cria-se assim uma sensorial e imagética atmosfera estética ao captar a própria coloquialidade movimentada do cotidiano. 

Nós sentimos o vento nos cabelos de uma personagem, ouvimos o barulho da neve e adentramos em um universo extremo (e “sem primavera”) que personaliza silêncios, incômodos, angústias, contradições, desistências, verdades, insinuações, raivas desesperanças, resignações e risos debochados. É como se isso tudo fosse uma “transcendência” estivesse cravado na impressão de seu mais recente filme exibido aqui na mostra competitiva oficial a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023. “Ervas Secas” é acima de tudo uma fábula, de percepção realista, em que existências são vulneráveis e expostas pelas fragilidades dos julgamentos sociais. É como se tudo isso acontecesse exclusivamente porque todos somos seres humanos. Está em sua natureza “atirar em cachorros”, não só os “sarnentos”. Ou competir entre dois homens para saber quem ganha a “prenda” (a mulher). Ou potencializar a arrogância e soberba pelo status de ser um professor. “Se você se preocupar com seres humanos aqui, não durará muito”, alguém diz. 

“Ervas Secas” nos conduz por espaços, histórias, esperas, ações, consequências, por conversas na aldeia sobre “tributar os solteiros”; “chaminé de fada”, por jogos de videogames com o delegado e por longas caminhadas numa inóspita neve. O que vemos em cada plano é uma poesia visual. A paisagem é incorporada e ajuda a fornecer o tom da narrativa. É um filme que acontece por núcleos, por tramas paralelas que se intercalam e representam um descanso-respiro-alívio da tensão da história principal, ora por papos, ora por fotos tiradas. E também uma imersão no pragmatismo das questões morais, em embates, ofensas (aceitáveis), tabus e limites entre intimidades com alunos (e os “contatos inadequados” – a aluna sabe; o professor sabe; mas os dois “brincam com fogo”, mesmo sem atentar para “como a mente de uma criança funciona”). Nesse momento, o longa-metragem, de três horas e dezessete minutos, ensaia uma evocação a “A Caça”, de Thomas Vinterberg. Em outro momento, sugere uma referência a “Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois”, de François Truffaut. “Ela manca e é de esquerda”, diz. Sim, tudo aqui pode servir de inspiração, mas no fundo o que encontramos é a mais pura autoralidade de seu diretor. 

Sim, a alma do cinema do realizador Nuri Bilge Ceylan é a busca da verdade naturalista. De abordar temas espinhosos. De confrontar “concurso de bondades” com o “cansaço da esperança”. “Ervas Secas” é um estudo sobre como é ser um humano vivendo em sociedade. Nosso protagonista, o professor, é dissimulado, desdenhoso, altivo, agressivo, pessimista, hipócrita, sonso, faz joguinhos para conquistar seu “objeto de desejo”, marca o território, nivela os argumentos, que “parece abraçar o egoísmo” sem “viajar em rebanho, que se “perde nas incertezas” e que é contra a “moralidade cega”. Mas que aguenta tudo para levá-la para cama. Essa personagem, que se adapta ao mundo, que não resolve questões, que se aceita como machista por necessidade fisiológica, é o típico ser humano. O mais real. O mais possível. Ir contra ele é estar contra a humanidade. E “Você nunca sabe onde encontrará significado”, alguém rebate. Para depois a narrativa aqui quebrar a ficção com a quarta parede, invadir os bastidores e nos mostrar de fora a vulnerabilidade do próprio ator dentro da personagem.

“Ervas Secas” é isto: uma sucessão de embates internos que questionam nossos próprios costumes ideológicos já enraizados, especialmente a reputação de nossos valores perante os outros. “Cães também têm seus destinos”, diz-se. Tudo aqui é uma tentativa de traduzir os indivíduos. De ouvir, sentir e julgar. É um espaço aberto e livre para exercitar nossas emoções ao assistir a essas crônicas intimistas no interior de uma aldeia na Turquia, bem longe de Istambul. A câmera, fotografia, roteiro (do diretor junto com Akin Aksu e Ebru Ceylan), interpretação, direção de arte, som, praticamente tudo em “Ervas Secas” conflui para uma estética e sensorial experiência visual. É uma obra-de-arte dividida em planos, num ritmo temporal equilibrado que conjuga a tensão e a espera. O ir e o vir. O filme faz com que não queiramos mais sair daquela aldeia, tampouco deixar as personagens. Somos convidados, “turistas” pelo período do inverno. 

5 Nota do Crítico 5 1

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