Entre Mulheres
Lutar ou partir
Por Pedro Sales
Quando mulheres de uma comunidade isolada acordam com escoriações e sangue no lençol, a primeira reação é o pavor e o desespero de não saber o que aconteceu. As mais velhas já conhecem o mal, mas ainda assim atestam que foi uma obra dos fantasmas ou de Satanás. A realidade é que o mal não é tão metafísico assim, ele mora ao lado. Pode dividir o leito da cama das próprias mulheres violentadas, ou mesmo ser o esposo da vizinha. Em “Entre Mulheres“, adaptação do romance homônimo de Miriam Toews, a sensível temática do estupro é central para o desenvolvimento da trama. A diretora Sarah Polley opta por não usar grafismos ou reproduzir os traumas, ela preserva as vítimas. Os diálogos já transmitem efetivamente os impactos causados após sucessivas práticas de violência doméstica (física, psicológica e sexual). Cada uma das mulheres carrega consigo as cicatrizes, algumas físicas e outras espirituais, e isso é perceptível, mesmo com a omissão do ato de violência das telas.
O longa se estrutura sobretudo nas discussões e nos conflitos-geracional-ideológicos entre as mulheres. Após a prisão de um dos abusadores, as mulheres da comunidade ficam sozinhas sem quase nenhuma presença masculina. A ausência do poder imposto pela força física dos homens contribui para a criação de um clima de mudanças. Em um plebiscito, todas devem decidir entre três opções: fazer nada, ficar e lutar ou fugir. Há, entretanto, um empate entre as duas últimas alternativas. Assim, um grupo de oito mulheres se reúne secretamente em um celeiro para decidir o futuro delas, lutar ou partir. Em razão disso, o aspecto dialógico e verborrágico se sobressai na obra, uma vez que o destino de todas está nas reuniões e na listagem de prós ou contras de cada uma das escolhas.
A divisão de votos se estende também para o grupo responsável pela decisão final. As mais jovens, Ona (Rooney Mara), Salome (Claire Foy) e Mejal (Michelle McLeod), desejam ficar e combater os homens, criando novas regras. As outras, influenciadas pela já idosa Greta (Sheila McCarthy), acreditam que o perdão é o único caminho plausível. Esse impasse que permeia o filme esbarra em dois fatores: a forma como lidaram com a violência e a religiosidade. Todas as mulheres presentes nas reuniões foram violentadas em algum momento, porém isso as afetou de maneiras diferentes. Salome acredita em usar a violência em resposta aos atos violentos. Mejal tem ataques de pânico. Enquanto Mariche (Jessie Buckley) escolheu perdoar as agressões, o que é lido por algumas como endosso. Polley insere os traumas de forma contida, ainda que potente. A cineasta alterna as discussões e os efeitos da violência com flashbacks do dia seguinte à agressão. A impotência e a confusão diante do que aconteceu é o que todas sentem, e o som dos gritos, quase sempre abafados, parecem não ser ouvidos por ninguém.
Entre elas, contudo, quem mais chama a atenção é Nettie, personagem que depois de violentada sublima toda sua feminilidade e passa a se identificar como Melvin (August Winter), ficando às margens tanto para as mulheres quanto para os homens, a única exceção são as crianças. O outro homem presente na trama, August (Ben Whishaw), também é visto como uma figura proscrita. É como se ele, por ser professor e excomungado da comunidade, não representasse a masculinidade dominante. Seu papel é fundamental, pois como as mulheres não sabem ler e escrever, ele quem faz as atas. O apoio de August surge como um auxílio técnico a fim de manter a ordem das reuniões, quando ele tenta impor sua visão, entretanto, logo a opinião é rechaçada, ali o espaço de fala é das mulheres.
Do outro lado, a religiosidade exerce força e pressão tangíveis na comunidade, a qual apesar de não ser nomeada é inspirada nos menonitas. O fundamentalismo religioso, portanto, transforma “Entre Mulheres” em uma obra quase anacrônica, ou distópica nos moldes da série O Conto da Aia, com Elisabeth Moss. Dessa forma, o assassinato como forma de se impor representa um duplo perigo, a própria morte e a condenação no inferno. O perdão, tão almejado por algumas, é quase impossível para outras. Em momentos de fraqueza e em que a angústia toma conta, o amparo surge na fé, nas passagens bíblicas e nas canções religiosas. Junto disso, o dilema entre o abandono e o enfrentamento passa pelos ideais de cada uma e pela forma como interpretam os preceitos cristãos. Por essa razão as atuações são o maior destaque do longa. As divergências e discordâncias entre elas é fundamental para construir a dúvida e reforçar a dificuldade da decisão. O quarteto Mara-Foy-Buckley e McCarthy funciona muito bem em tela pelas singularidades das personagens, algumas irascíveis, outras mais racionais e serenas. As performances se complementam nas diferenças, enriquecendo a discussão.
Outro ponto central é o isolamento da colônia, que não é apenas geográfico, mas também moral e tecnológico. A fotografia pontua o distanciamento pelos planos gerais do espaço rural. Os figurinos e cenografia, por outro lado, pontuam esse aspecto “filme de época”. É por isso que a cena do recenseamento é tão potente, por contrastar as condições em que elas vivem em relação ao tempo histórico em que estão inseridas. As mulheres, ao se depararem com a presença do estranho, se escondem dele, apenas duas ousam se aproximar. Esse momento, além de ser desconcertante, é um ponto de virada, pois reafirma a urgência da decisão e como a janela para a escolha se fecha.
Um ponto de “Entre Mulheres” digno de debates é o trabalho de fotografia. Os planos ostentam uma palidez tonal com cores esmaecidas ao longo de toda a rodagem. Nas externas diurnas, por exemplo, o efeito gera estranheza. Entretanto, quando as cenas são à noite, esse tratamento gera excelentes planos. Alguns desses muito poéticos e contemplativos por sinal, como a cena da navegação astronômica e das mãos levantadas para o céu, simbolizando a desejada liberdade. Um outro plano que mesmo simples é bastante expressivo mostra Salome caminhando com seu filho, porém a cerca no centro do plano os separa. Ele já é um homem, apesar da idade tenra de adolescente e isso já é suficiente para afastar mãe e filho em uma cadeia de relações de poder da colônia.
Com performances enérgicas e uma narrativa calcada nos diálogos, “Entre Mulheres” é um longa que convida o espectador à reflexão. As discussões para a construção de um mundo melhor para as mulheres da comunidade esbarram em várias nuances, como o patriarcalismo e a religião, elementos basilares da realidade que elas vivem. O próprio ato de se reunir e ousar romper com o ciclo de violências perpetuados desde sempre é um ato de fé, é o anseio de nunca mais ter que perguntar: “Como você se sentiria se em toda a sua vida nunca importasse o que você pensava?”. Polley realiza um filme com sensibilidade suficiente para tratar de tópicos angustiantes sob a ótica feminina e, ao mesmo tempo, por meio da emancipação, desenvolve uma carga de esperança em que todos os abusos podem se tornar lembranças distantes, narradas pela mais velha para aquela que ainda está por vir.
4 Comentários para "Entre Mulheres"
Pedro
A sua análise é maravilhosa. Sempre gosto de assistir o filme primeiro e depois ir buscar as análises. A sua ampliou o meu olhar 500.000 vezes.
Vou assistir de novo para me deliciar com a profundeza da sua visão
Grata
Obrigado pelas palavras, Margarida. Para mim, esse é o maior deleite das análises e das críticas: poder enxergar o filme com os olhos dos outros
Filme sem análise ; as atrizes carecem de espontaneidade, são roteirizadas de acordo com viés de militâncias. Em resumo, pobre e chatésimo.
Perfeita a sua análise