Ema
A estética da geração atual
Por Fabricio Duque
Mubi
Após vencer o prêmio Giovani por Melhor Filme no Festival de Veneza 2019 e participar da seleção de Toronto, Sundance e Roterdã, “Ema”, novo filme do chileno Pablo Larraín (de “No”, “O Clube”), chega agora em pré-estreia virtual no streaming Mubi, como uma estratégia de lançamento, e nos apresenta uma diferenciada condução do melodrama, que se desenvolve pela estilização narrativa e pela imersão sensorial-etérea de estética arthouse.
“Ema” é um quebra-cabeças. Um mosaico fragmentado de uma grande epifania montada por um plano, cujo pano de fundo é o movimento. A expressão corporal contra a inércia (e ou a alienação aceitada), consequência natural do sistema social. É um protesto artístico e rival a favor do Reggaeton (um reggae espanhol do Panamá, influenciado pelo hip hop, pela salsa e pela música eletrônica), que é visto como “música de prisão; um ritmo hipnótico que causa uma ilusão da realidade”), nas vozes de Tomasa del Real e De Lein.
A experiência é intensificada pela fotografia neon, de artificialidade cênica, e pela trilha sonora, eletrizante, de Nicolas Jaar. Assim, a percepção da imagem é alterada, como assistir uma preparação de atores antes do show e/ou a ficção do Sol projetado e/ou um semáforo em chamas (com a música que nos infere à abertura-aviso do início de um espetáculo), poetizando com estética a anarquia libertária e libertadora. Sim, “Ema” é um filme performance. De inquietação fora do tempo e do espaço, que insere aos poucos, não linear, não mastigada e interpostas sem avisos, peças para que o espectador monte, ainda “desorientados como uma lagartixa que perdeu sua cauda”.
“Ema” é também um filme dança, ora contemporânea, ora street dance de raiz, que busca a liberdade do movimento e que encontra a “geração atual”, os “agentes da mudança”. Ema (a atriz Mariana di Girolamo, de “Hotel Zentai”, “No Quiero Ser Tu Hermano”), uma “mulher má”, cansada de esperar pela Lei, ultraconservadora e corrupta, resolve agir. Monta um coletivo feminista e poliamor, cria um plano anti-moralista, anti-ético e anti-social (aos olhos dos outros) e o segue até conseguir o que quer, junto com seu marido, diretor dos espetáculos e “não rotulado”, Gastón (o ator Gael Garcia Bernal, de “No”, um dos filmes dirigidos por Pablo Larraín): reaver seu filho, nem que para isso tenha que destruir literalmente a nova família formada.
Mas o longa-metragem para acontecer em fragmentação precisa se desvencilhar da interpretação e focar quase exclusivamente na proposta da forma, com seus diálogos, vagos, técnicos, protocolares, vazios, mais encenados e sem emoção, construídos por rápidos instantes pela necessidade da velocidade do corte (ou o fora do tom de estender a observação dramática), cuja tradução remete à atmosfera existencialista do cineasta Terrence Malick (“De Canção em Canção”) e também à vanguardista de Gaspar Noé (“Love”), passando pela liberdade desconstruída de Gregg Araki. “A traição de uma mulher é muito pior para um filho”, dito pelo “porco infértil, preservativo humano” e de corpo flexível (a cena da cama infantil), entre jogos de manipulação psicológica, estimulando a causal briga do casal. Assim, as questões soam como gatilhos comuns, mais “briguentas” e soltas com suas reações julgadoras, forçando a espontaneidade.
“Ema” é também uma crítica à assistência social, que limita o olhar e a escolha pela figura da família comum, aquela que não se rebela, que não tem espaço para “desgraçado indesejado”, que procura a “civilização”, que não “brinca com fogo” (a “ejaculação de um dinossauro macho”), que não reconfigura a cultura do folclore, e que não expõe fisicamente liberdades artísticas e sexuais, como “advogados terríveis”. Ema joga com bombeiros (o ator Santiago Cabrera, de “A Vida dos Peixes”) para se revoltar contra a cidade e deixar avisos. Ela e suas amigas são as “anarquistas de Valparaiso”.
Mas o filme ganha força quando equilibra seu ritmo de aceitar, sem julgar, a loucura materna, que acredita que os fins justificam os meios. Torna-se livre na essência, despirocado com propósito e despertado de um insensível transe máquina. A modernidade do final, maduro demais, incomoda à geração de uma casa atrás, pela naturalidade comportamental do feminismo, que não se prende em definições. Mariana di Girolamo consegue explicar isso quando diz: “É um retrato de uma geração, diferente da minha, de Pablo e de Gael. Agora, eles perderam o medo de seguir novos paradigmas; conhecem o poder do coletivo e de caminhar como uma só voz”. Uma das músicas tocadas corrobora o que foi dito: “Apagar minhas forças não te dará poder”.
“Ema” é sobre o ensinar a se movimentar expressiva e livremente por “artistas loucos e intensos”. Sim, a palavra que percorre todo esse texto é liberdade. A de se rebelar contra o autoritarismo, principalmente com a poesia metafísica de um separado, plural e integrado balé-orgia, que reinventa relações e o conceito de família. Um filme que intercala a pretensão do hipster-blasé-cool com a poesia estética-imagética-descolada para contar a história da força de Ema, enquanto mãe e como mulher salvadora de seu casamento.
“Ema é uma personagem multifacetada, já disse o diretor Pablo Larraín. Uma mulher tão complexa, muito enigmática, hipnótica e sensual. Ela sabe o que quer e tem uma percepção que nenhum outro tem. É libertação e perigo, como o Sol e como o fogo de seu lança chamas”, finaliza a atriz Mariana di Girolamo, que encarnou Ema, no final Q&A logo após a sessão de exibição.