Em Emergência
O que é a Índia?
Por João Lanari Bo
“Em Emergência”, filme estrelado e dirigido por Kangana Ranaut, tem uma proposta ousada: narrar a biografia de uma das estadistas mais importantes do século 20, Indira Gandhi, durante quinze anos Primeira-Ministra – em dois períodos, de 1966 a 77, e de 1980 a 84 – do país mais populoso do planeta, a Índia.
Não é pouca coisa, é o mínimo que se pode dizer. Indira, hoje uma personalidade quase esquecida na mídia ocidental, foi figura decisiva no tabuleiro de xadrez da Guerra Fria, sobretudo nos anos de 1970. Richard Nixon, o malfadado Presidente norte-americano, chamava ela de “bitch”; Henry Kissinger, mais sofisticado, mas igualmente implacável, preferiu a alcunha de “iron lady”. Resumir uma existência atribulada e intensa como a de Indira em duas horas e meia, era sem dúvida um desafio e tanto – louve-se, portanto, a coragem de Kangana Ranaut, ex-modelo e atriz, em aventurar-se nessa seara politicamente ultra delicada. Além de um curta em 2012, esse é o terceiro longa-metragem que assina a direção.
Um dos efeitos colaterais da onda de streaming que assola a civilização é o acesso, ainda que parcial, à produção cinematográfica indiana, sobretudo aquela catalogada como Bollywood. Como se sabe, é ralo o fluxo de produtos audiovisuais indianos que circulam no Ocidente, apesar da enorme quantidade de produções, inclusive de independentes. Com o novo panorama do consumo, em particular da Netflix, surgiu um novo vetor de distribuição global, e passamos a ter disponíveis filmes que jamais seriam vistos em um mercado como o brasileiro. Filmes, sublinhe-se, que são consumidos avidamente no país de origem, pensados e voltados para um público ansioso e voraz, afeitos a um repertório saturado de emoções e quase “caricatural” – aos olhos ocidentais, é importante notar.
“Em Emergência” atende aos requisitos básicos bollywoodianos. As histórias criadas em Bollywood tendem a ser melodramáticas – amores impossíveis, dramas familiares, sacrifícios, vilões, famílias separadas – com melodias ajudando a estruturar a narrativa. O sucesso dos filmes é medido, via de regra, a partir dos números musicais. Esse é o caso do filme em tela, que pode ser definido como uma história política dramatizada com apoio de músicas cantadas, individual ou coletivamente. Que podem ocorrer nas situações mais inusitadas: por exemplo, em uma sessão acalorada do Parlamento em Nova Delhi, semelhante ao que se passa no Parlamento britânico, somos surpreendidos (nós, os indianos não) com uma cantoria desenfreada dos representantes do povo. Ou então, o que é mais bizarro ainda: em meio a uma cena de tortura dos inimigos de Indira, uma das vítimas não se intimida e solta a voz, acompanhado pelos demais, numa espécie de protesto estilizado e estetizado nos estúdios de Bollywood.
Sim, a Índia é um país extremamente violento, absolutamente multicultural e multilíngue, cheio de fissuras sociais e étnicas, religiosas e regionais. Vale o que diz a parábola chinesa, o outro colosso asiático: quanto mais se conhece a Índia, menos se sabe sobre a Índia. Desconfie, caro leitor, dos turistas acidentais e viajantes curiosos portadores de sínteses fugazes. A própria Indira, em um momento de euforia compartilhado com seu filho Sanjay, exclama diante de um mapa: afinal, o que é a Índia? E mais: o que é a Índia no concerto das nações no conturbado século passado, quando se envolveu em guerras com a China, inimigo milenar, e o Paquistão, vizinho imediato ? Foi nesta última guerra, em 1971, que a Primeira-Ministra foi a Washington e encarou o mal-humorado Nixon, que ameaçava apoiar os paquistaneses. Indira, esperta, aliou-se aos soviéticos, equilibrando a balança.
Kangana Ranaut é uma intérprete convincente dessa poderosa mulher. Indira era filha de Jawaharlal Nehru, o líder da independência indiana em 1947: logo, frequentou a intimidade do poder desde a mais tenra idade. O sobrenome Gandhi não tem nada a ver com Mahatma Gandhi, era o nome do marido. Governou sempre com um olhar social, simpático às causas da esquerda – mas não hesitou em declarar um arbitrário e brutal estado de emergência, em 1975, quando a justiça considerou-a culpada de fraude eleitoral e a proibiu de se candidatar por seis anos. Esses momentos são um dos pontos altos de “Em Emergência”, juntamente com a guerra indo-paquistanesa. Pagou caro e perdeu as eleições de 1977, retornando em 1980 com votação maciça.
Os anos seguintes de seu governo ficaram marcados por um rompimento grave nas relações entre os hindus e sikhs. que levariam a seu assassinato. Os autores foram membros sikhs da sua guarda pessoal. A seu pedido, as cinzas foram lançadas nas montanhas do Himalaia.