Durval Discos
Um filme-acontecimento
Por Fabricio Duque
A realizadora Anna Muylaert já inicia sua carreira em grande estilo e competência. Roteirista e diretora de “Castelo Rá-Tim-Bum: O Filme”, incluindo onze episódios da série de televisão, seu longa-metragem de estreia “Durval Discos” (de 2002, mesmo ano que também escreveu “Desmundo”) é o que se pode chamar de filme-acontecimento, por ofertar a seu público uma nova experiência, que fugia do padrão dos filmes já feitos, desconstruindo, inclusive, a forma condutora de sua produção.
Aqui, o que parece ser apenas uma crônica observacional, coloquial e cotidiana da intimidade de uma família classe média baixa, quase um ficcional documento antropológico de viés cosmopolita, ao decorrer da trama, torna-se uma caótica imersão noir ao melhor estilo de Alfred Hitchcock, inferindo até mesmo a seu “Disque M Para Matar”, mas contudo se comportando como um interiorizado suspense criminal. “Durval Discos” consegue envolver o espectador, desde o início, em um manancial de sentimentos controversos e transgressores, nos aprisionando em um compartimento conflituoso entre a fofura de inocente memória afetiva familiar e o estranhamento esquizofrênico de suas consequências.
O longa-metragem inova na forma-narrativa pela despretensão do ser e do agir, expressando-se por uma sensação metafísica, um dos destaques é sua abertura-balé dos créditos, que integra a cidade como personagem de passagem (mas que faz parte do dia-a-dia dos protagonistas, servindo de base, costumes e direção), em um complexo plano sequência (surpreendendo a quem assiste e gerando a expressão “Uau!”), que nos convida a passear por um orgânico, espontâneo e teatral (essencialmente por seus travelling à la estúdios de Hollywood). Tudo ao mesmo tempo junto e misturado.
Entre esquetes de cotidiano, “Durval Discos” é um retrato fiel dos integrantes de São Paulo, ainda que em certos momentos potencialize os tipos mais caricatos (idiossincráticos, intransigentes, impulsivos, barulhentos, barraqueiros – um que dos papéis de Regina Casé – ranzinzas, lotado de manias, defensivos, passionais, ciumentos, dramáticos e perdidos por criarem um inatingível personagem de si mesmos), como o “doido” do Reggae (participação de André Abujamra, que também assinou a trilha musical) e/ou a excêntrica cliente hiperativa (participação de Rita Lee). Até porque quem já viveu nesta cidade sabe como a engrenagem funcional, especialmente na área da Rua Augusta com a Rua Teodoro Sampaio.
Em mais um momento, a história muda completamente de rumo e nos apresenta a verdade nua e crua do lado sombrio de suas personagens. A moralidade dá lugar à necessidade e ao famoso jeitinho brasileiro de barganhar e levar vantagem (numa repaginação desastrosa de uma típica família rica aristocrática). Só que há o ditado popular que diz: “Enquanto você vem com a farinha, eu volto com o bolo pronto” e/ou nas palavras de Fabricio Carpinejar: “A mulher que fica quieta numa briga já está fazendo a mala”. Sim, a reviravolta nos mergulha em uma confusão projetada, com total e absoluto controle de execução. O que era leve, elementar e de contemplação primária, embarca em uma patologia de desligamento da realidade maniqueísta. Agora quem mostra a cara é a loucura, desencadeada por um gatilho desconhecido e ininteligível, religou e produziu a perda total dos sentidos.
Esta co-dependência disfuncional projetou níveis máximos de falsa percepção e de imaginação transposta ao possível. De novo, o filme adentra e se afunda em um terreno dark-psicótico, de um mórbido conto de fadas, com um que intenso dos Irmãos Grimm. Assim as personagens de “Durval Discos” compreendem que o futuro é incerto e vulnerável. Acabou-se o doce de viver o simples como filosofia de vida. Que é hora de deixar o novo tomar as rédeas, não mais de um cavalo deslocado em uma charrete em meio às ruas movimentadas cheias de carros de Sampa, ação esta, por sinal, que desperta curiosidade nos passantes, estes, que por sua vez, emprestam suas expressões à câmera, apropriadas do coletivo que acontece em tempo real, e que aqui corrobora e homenageia o novíssimo cinema direto advindo da Nouvelle Vague, agora abrasileirada e de metáfora social a uma nostalgia que não pode mais existir. E/ou até também em uma inferência à cena da bicicleta em “O Iluminado”, de Stanley Kubrick.
Sem coxinhas, brigadeiros e discos de vinil (com seu “lado a e lado b” e a “facilidade imediata de visualizar fisicamente a faixa). 1995 é o ano representado. Um período-intervalo estranho e complicado para definir, entre os oitenta e o início do novo milênio. Um período. É exatamente nessa transição que “Durval Discos” mostra toda sua maestria. Quando respeita a estrutura popular. Que resiste ao tentar conservar o tempo de um espírito reminiscente, embalado pelo som dos ícones da MPB, como Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, Tim Maia. Ao lidar com as dificuldades do negócio de rua, “antiquado” e analógico.
Tudo em “Durval Discos” causa uma aflição. Uma tensão. Uma iminência de não saber qual será o desenrolar da história. Nós estamos envolvidos e literalmente entregues às direções de moralidade relativa e subjetiva de seu roteiro. “Onde você acha que essa porta vai dar?”, finaliza-se ao som de “Pérola Negra”, de Luiz Melodia, e seu como faz para “apagar um engano”. Concluindo, uma obra precisa e que já nasceu obrigatória, clássica e de nostalgia atemporal. Vencedor do Festiva de Gramado 2012 por Melhor Filme do Júri Oficial.