Doze Mil
Um musical sem música
Por Vitor Velloso
Supo Mungam Plus
“Doze Mil” de Nadège Trebal está entre a matéria e a fantasia em meio a todos os processos de degradação moral do trabalhador. A mais-valia é a chaga que abre o filme. Na contramão dos demais filmes que utilizam a fantasia como fragmentação ou escape da realidade, a obra aqui procura a ideia do absurdo em meio à necessidade de ganhar dinheiro. As danças são “danse macabres” que mais louvam a falência moral do capital que a própria desgraça de seus personagens. É uma espécie de rito dos flagelados do sistema. Nesse caminho, é interessante como o filme não cede à uma representação saudosista da história material francesa e a ética se torna valor de troca.
A linguagem incorpora de maneira consciente o rigor da realidade e a embriaguez de seus “lucros”. A mais-valia em diferentes formas, do trabalho à ideologia, a ideia de “identidade” se dissolve para a sobrevivência das terras arrasadas pelo “desenvolvimento” e suas ruínas imperiais. Como boa parte da cinematografia francesa, o prazer carnal ultrapassa qualquer debate possível e ganha um contorno de necessidade. É uma verve quase primitiva que o cinema francês não consegue ultrapassar. Um dos becos sem saída no processo de formação cultural, ao qual eles se alinham com fluídos e dentes. Mas “Doze Mil” não se prende ao ligeiramente assimilado, trabalha seu protagonista Frank (Arieh Worthalter) na direção oposta que alguns textos apontam. Não se trata de um panorama da pobreza, e sim de uma frente de exposição onde essa necessidade é o deslocamento dos personagens em meio à burocracia capitalista.
Em um primeiro momento a distância física é a negação da companhia de sua família, em segundo seu desligamento prévio de um serviço que não conseguiu realizar e o problema está dado. O posicionamento do filme é claro, Frank quer um trabalho e pouco importa a margem que isso represente. De margem para margem tem um rio e ele não aceita ficar parado. A cena de sua dança diante dos operários à troco de moeda, mostra que “às vezes a migalha mata a fome”, mas a degradação moral do trabalhador e o deslocamento da consciência de classe para a necessidade de acúmulo, faz com que a roda do capital seja comprometida. Está claro que a classe dominante pouco sofre com os danos ali causados, porém, a “balbúrdia” (para usar um termo de ressonância) é a grande diversão do processo. O ganha-pão se torna celebração do caos, é onde a corrupção do capital entra em declínio.
Em determinado momento de “Doze Mil” existe uma verdadeira coreografia em curso, tanto com a câmera e a montagem captando o ritmo do furto, como as próprias personagens dançando diante de seu trânsito em meio ao acúmulo de riquezas dos outros. É uma sequência particularmente divertida, afinal, abraça o delírio coletivo das massas no velório de sua própria memória “mitológica-fundadora”. Não por acaso, a câmera se comporta de forma distinta na dança com Maroussia (Nadège Trébal), pois é o próprio projeto assumindo as rédeas dessa representação. A cineasta e atriz divide tela com seu protagonista, tomando a tela para si e dividindo a ternura e o tesão dos marginais nessa dança fúnebre, entre a despedida momentânea e o medo. E isso remonta a um elemento presente na narrativa, sem grandes explicações racionais, que torna o barato mais interessante.
Frank gosta de estar uniformizado, sentido-se parte integrante de uma unidade (não por acaso seu deslocamento constante é seu grande martírio) e nenhum desses uniformes ele consegue por contratação. Um deles é fruto de uma agressão, onde ele assume o posto do funcionário nocauteado. Não existe nenhuma explicação interna que viabilize esse processo, e nem precisa.
Por essas andanças é onde “Doze Mil” compreende que a forma é o conteúdo, assumindo o delírio nas composições rítmicas e coreografadas, uma espécie de musical sem música. Onde os espaços são fundamentais na compreensão dessas opressões e necessidades, ainda que consigam um respiro maior quando a objetiva se aproxima e dança junto aos personagens cercados de sons do “progresso”. Os barulhentos carros fazem parte do “tango de satã”, ou a falência moral do progresso.