Doutor Sono
Nostalgia Tacanha
Por Jorge Cruz
“Doutor Sono”, o livro, foi lançado por Stephen King em 2013. Mais um tijolo do consagrado autor, que retomou a história do clássico (da literatura e do cinema) “O Iluminado”, saciando o desejo de quem não podia morrer sem saber o que aconteceu com o menino Danny Torance (Ewan McGregor). O culto à personalidade de King, que merecidamente possui uma base de fãs enorme ao redor do mundo, encheu de poder este senhor nascido no Maine há mais de setenta anos. Sua forma midiática de vender suas obras, iniciada quando Hollywood viu o tamanho da grife Stephen King, vem gerando longas-metragens cada vez mais intragáveis.
Adaptar uma obra de um gigante como ele demanda fazer concessões ao próprio criador. Da mesma forma que a Warner aceitou que J.K.Rowling roteirizasse as produções da saga “Animais Fantásticos”, notícias apontam a alegria de Stephen King em ver que a continuação do clássico kubrickiano de 1980 foi “consertado” pelo diretor e roteirista Mike Flanagan. Todavia, o que é entendido como qualidade se revela a mesma fraqueza observada em “It: Capítulo 2”: o desenvolvimento de uma trama complexa, recheada de personagens que por vezes não justificam seu tempo de tela, para chegar ao local que já ea esperado.
O prólogo de “Doutor Sono” é até promissor. Quase como um microconto de terror, lembra um pouco a cena inicial de “Jurassic Park 3”. Para manter as ações da fan service em alta na Bolsa, somos brindados com a recriação do passeio de velocípede do menino Danny no Overlook original. A partir daí o roteiro se divide em três. Um núcleo fica responsável pela materialização da vilania, a partir de uma seita que descobre a imortalidade sugando o fluxo de vida de Iluminados. O grupo, liderado por Rose (Rebecca Ferguson), é composto por outras pessoas que também dominam a telecinese. O segundo núcleo tem como protagonista Abra (Kyliegh Curran), uma menina que demonstra ser a Iluminada mais poderosa que já surgiu. O terceiro e último é o do próprio Danny, que tenta superar o alcoolismo enquanto sofre com pesadelos e alucinações relacionados aos seus traumas.
Ewan McGregor não encontra dificuldades para entregar um bom trabalho, até porque Danny é um coadjuvante de sua própria história. O ritmo cadenciado da obra se dá pela repetição de situações que reiteram as motivações dos antagonistas. É tempo de tela demais para criar elementos de um conjunto de pessoas que será descartada de uma vez só. Como criador dos personagens, é provável que Stephen King ame essas adaptações mais recentes e até incentive o estúdio a seguir esse caminho. Só que essa abordagem não funciona no cinema. O terror físico não existe e o psicológico não consegue se impor, porque o filme está sempre renovando o estoque de informações importantes.
Um dos grandes acertos da trajetória de Danny acontece quando ele vai trabalhar de enfermeiro em uma clínica de doentes terminais. Um ambiente limitado e rico de boas histórias, capaz de gerar sensações de todo o tipo. Guardadas as devidas proporções é quase como se dialogasse com “À Espera de um Milagre” e “Misery: Louca Obsessão”. Pois todo esse potencial se esvai porque o leque de tramas é extenso demais. Outro grande ponto não trabalhado é a dificuldade da seita de encontrar humanos que o alimentem, mostrando que King se rendeu à alegoria do processos de desumanização da sociedade.
Só que “Doutor Sono” a todo instante que estabelecer um novo cânone enquanto procura dialogar com a obra renegada de Stanley Kubrick. Uma tentativa tardia se surfar na onda de um sucesso que se mostrou atemporal passadas quatro décadas mas que foi pautado justamente na simplificação da viagem louca do autor do livro. Enquanto a adaptação de um dos maiores diretores de todos os tempos foi responsável por debates acerca das representações do filme – que perduram até hoje – o que Flanagan faz é mastigar tudo o que está acontecendo, como se avisasse a Stephen King que se pautou na fidelidade ao material original.
Seu trabalho de direção, ao contrário, é muito bom. Dentro das limitações de um produto que conta muito e mostra menos do que se espera, a produção e a maneira de filmar são, de fato, caprichadas. O filme ganha um pouco mais de força quando o poder de Abra é dimensionado e se define qual é, de fato, a crise a ser superada. Precisamos esperar pouco mais de uma hora para que ela e Danny entendam qual o objetivo a ser conquistado. A demora é ainda mais injustificada quando observamos que os dois lados da história estão querendo o embate.
A trilha criada pelo The Newton Brothers está ali também pelo fan service. Reciclando o tema clássico, se utiliza de violinos e batidas de coração para nos aproximar de uma ambientação clássica, referenciando diretamente o terror oitentista. Por sinal, os efeitos especiais parecem, às vezes, terem saído de lá também. Luzes nos olhos e pessoas que viram fumaça dão a sensação de que estamos assistindo a um episódio de “Buffy: A Caça-Vampiros” ou da novela “A Viagem”.
A grande diferença de arcos extensos de obras de Stephen King adaptadas ao cinema, como o já citado “À Espera de um Milagre”, é que no roteiro de Frank Darabont as figuras carismáticas se constroem a partir de picos de emoção e sensibilidade. Há um processo de escolha ao transpor uma obra literária para os cinemas, fazendo com que certos aspectos tão valorizados em um livro sejam eliminados no filme. Darabont também adaptou “Um Sonho de Liberdade”, longa-metragem que deve ser passado de dever de casa para aqueles que saíram esfuziantes da sessão de “Doutor Sono”.
Toda a estética “Penny Dreadful” construída ao longo de mais de duas horas é descartada sumariamente no clímax, que leva os personagens de volta ao hotel, o verdadeiro protagonista de “O Iluminado”. Aqui Mike Flanagan não possui mais controle sobre sua obra, o filme se transforma em uma recriação de momentos icônicos, com o único objetivo de trazer a nostalgia como elemento e fazer com que o público saia do cinema com a sensação de terem visto algo formidável. Boa parte é capaz de já ter esquecido do início, dada a fugacidade do trato de muitos com a arte. O pior é o epílogo que ousa dar margem a uma franquia e ainda se encerra citando Wanessa Camargo com a bela frase “shine it on”.
Portanto, “Doutor Sono” é mais uma adaptação claudicante de uma obra de Stephen King ao cinema. Querendo atingir várias frentes, não aposta na liberdade artística da equipe de produção e o resultado final é uma trama rocambolesca que depende da reciclagem da iconicidade imagética que o tantas vezes criticado Stanley Kubrick criou para que seu detrator pudesse tirar proveito.