Doleira: A História de Nelma Kodama
A doleira que sabia demais
Por João Lanari Bo
“Doleira: A História de Nelma Kodama“: só mesmo no Brasil um documentário com pretensões mercadológicas teria um título desses, abrindo com essa pérola do cancioneiro, quer dizer, do vernáculo popular: doleira.
Doleira é feminino de doleiro.
Doleiro é o indivíduo que compra, vende ou negocia dólares no mercado paralelo, que opera paralelamente ao mercado reconhecido, embora sua existência seja oficial. Etimologia (origem da palavra doleiro): Dólar + eiro.
A palavra “oficial” aparece na definição do dicionário com significado um tanto elástico, naturalmente. Doleiro é uma atividade ilegal, dá cadeia, como podemos conferir no filme de João Weiner, em boa hora lançado pela Netflix. Está relacionado a lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e crime organizado. Aqui, no pico da inflação galopante do governo Sarney – mais de 80% ao mês, padrão Argentina – desenvolveu-se essa curiosa profissão, que atraiu algumas das mentes mais astutas da classe média, inclusive da chamada alta classe média. Ser doleiro dava status, viagens a Paris e outros fetiches de consumo: com a desvalorização alucinada da moeda nacional, quem podia corria para o refúgio do dólar, a moeda forte. Quem não podia, ou seja, metade ou mais da população, sofria, e muito. É nesse sentido que o Plano Real do FHC salvou o Brasil, pelo menos dessa agonia – resta muito por fazer, por óbvio.
“Doleira: A História de Nelma Kodama“, uma espécie de fábula sobre o alpinismo social nesse mundo consumista que vivemos, combina a construção dessa personagem (quase) inacreditável, Nelma Kodama, com uma rotatória de entrevistas esclarecedoras: jornalistas como Malu Gaspar e Fernando Rodrigues, a procuradora Janice Ascari e o diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão, funcionam como marcadores de contexto histórico-policial sobre o que se passava nos trópicos tupiniquins naqueles tempos tumultuados. O petrolão e seu ilustre antecessor, o mensalão, comparecem: a messiânica Lava Jato torna-se também objeto direto do discurso documental. Fatos e revelações que sacudiram o superego brasileiro, que deram (e continuam a dar) muito dinheiro a advogados espertos, e parecem sofrer, a crer-se na mídia, de um premature burial – não confundir com o clássico de Roger Corman e o inigualável Ray Milland, de 1962 – veem à tona irremediavelmente.
É nesse preciso momento que entra em cena um fabuloso e esquecido personagem, o ex-deputado Pedro Corrêa, em si mesmo merecedor de um documentário, só para ele. Dono de uma verve irônica e acurada, esse double convict – pegou cadeia pelo Mensalão e, incorrigível, pelo Petrolão – o ex-deputado discorre com detalhes sobre a corrupção patética que se montou entre políticos e empreiteiras, entre partidos e a Petrobras, para viabilizar campanhas eleitorais e enriquecimentos pessoais. Corrêa afirma que não ganhou com as “operações”: de fato, o juiz Barroso do STF extinguiu em 2023 a punibilidade do acusado. A extinção da punibilidade se dá quando não há mais como impor ao condenado a sanção penal – Corrêa não tem como pagar a multa a ele atribuída, além dos anos de prisão que pegou. Embora a Lava Jato possa sugerir “um imaginário de que todo mundo era ladrão na Petrobras” – na esfera real da lei a coisa continua pegando, como indica a recente prisão do ex-diretor da Petrobras, Renato Duque.
Nelma e Pedro Corrêa compartilharam o espaço prisional, na arrancada da Lava Jato – eles ficaram na mesma cadeia em Curitiba, mas em celas separadas. As narrativas que emanam desse período são um dos pontos altos de “Doleira: A História de Nelma Kodama“. A doleira, que passa o tempo todo no filme como se estivesse posando para uma selfie infinita, faz pausa para meditação: cadeia, quatro paredes, sol nascendo quadrado. Depois de paixões tórridas e proezas sexuais, do “doleiro dos doleiros” Alberto Yussef a outros menos votados, como dizia Ibrahim Sued, Nelma, nascida em Lins de família abastada e dentista formada, reflete enfim sobre a espiral enlouquecida de dinheiro e corrupção em que se meteu.
E pelo alto preço que pagou, embora não se arrependa de nada. Em 2022, foi acusada de intermediar, na Europa, a distribuição de meia tonelada de cocaína apreendida pela PF em Salvador. A conexão: seu namorado à época (e atleta sexual, segundo ela), um conhecido lobista em Mato Grosso, Rowless Magalhães. Ficou presa em Lisboa, foi extraditada para o Brasil e pegou três meses em Salvador – o “fundo do poço” – e outros tantos em São Paulo, total ano e pouco. O documentário em tela coincide com sua liberdade condicional, e sua amizade com o trio de advogados que a defende – Nelma sem dúvida tem qualidades de liderança.
O suntuoso apartamento em que concede boa parte das entrevistas – bem vestida, exibindo sua coleção de sapatos – é mais um sinal, hélas, de que a grana que circulou naquele tempo continua… circulando. Malgrado a canetada radical do juiz Toffoli do STF – anulou todas as provas obtidas na Lava Jato, pois elas “se valeram de verdadeira tortura psicológica, um pau de arara do século 21, para obter ‘provas’ contra inocentes” – a festa parece continuar, para os mais votados, claro.
Toffoli é outro que merece um documentário à parte. Mas essa é outra história…