Dias de inverno
Utopia fronteiriça
Por Victor Faverin
Durante o Festival de Cinema de Gramado 2020
No Brasil, a cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais, é uma das principais exportadoras de moradores para os Estados Unidos. A distância entre o município mineiro e o país norte-americano é de, aproximadamente, 8.300 km. Para muitos brasileiros, apesar da longa distância, a terra do Tio Sam é sinônimo de qualidade de vida e possibilidade de enriquecimento. O que tal mudança pode, então, significar para os mexicanos, cientes de que apenas um muro os separa do famigerado ideal de oportunidade? Essa é uma das reflexões que “Dias de inverno” (2020), longa-metragem dirigido por Jaiziel Hernández e que compõe a Mostra Competitiva do 48º Festival de Cinema de Gramado busca trazer.
Centrado na figura de Nestor (Miguel Narro), um jovem recepcionista de hotel que se vê preso na cidade natal pela obrigação de cuidar da mãe, que claramente não precisa e talvez nem deseje tal amparo – ao passo que os dois irmãos vivem no exterior – o filme martela na cabeça do espectador as frustrações de seu protagonista e seu jeito blasé de levar a vida. O diretor usa e abusa de plano geral aberto para situar o público além de montanhas ou desertos, como se a todo o tempo apontasse com a câmera a localização do “X” do mapa do tesouro, onde está situado o país cujo principal produto a ser comercializado é a cultura, o velho e falido “american way of life”, e que vê imigrantes latinos como “cucarachas”. A sensação aqui é de que apenas o destino importa e a jornada é um mal a transpor. Nada de novo no império.
Aliás, essa proximidade latente com a terra dos sonhos exposta no filme faz lembrar de “Projeto Flórida” (2018). Ambas histórias contam com a ingenuidade da busca e, ao mesmo tempo, ressaltam que a roda gigante estadunidense só permite vista panorâmica a uma casta privilegiada e nativa, salvo raras exceções. Nesse rol, o baseball, elemento constante em “Dias de inverno” pode ser lido de forma simbólica: um lembrete de que a falta de habilidade do protagonista no esporte torna indesejável a sua ida e permanência aos Estados Unidos. “Você não é bem-vindo ao nosso jogo”, diria Joe DiMaggio (jogador norte-americano eleito para o hall da fama do beisebol e ex-marido de Marilyn Monroe) se visse como Nestor erra a bola todas as vezes em que tenta rebatê-la.
No entanto, a sutileza de Jaiziel Hernández para por aí. A figura do “gringo” Mr. Feldman (Peter Theis) na história evoca a imagem do estrangeiro obrigado a estar em um país em desenvolvimento para fazer o trabalho sujo da multinacional onde trabalha. Esse personagem traduz e vocaliza no longa a ideia de que, onde quer que se esteja, a vida é uma só e não deve ser desperdiçada. A relação entre o protagonista e ele, aliás, diz muito sobre o complexo de vira-latas destacado por Nelson Rodrigues de todo latino-americano frente aos “irmãos” de cima do mapa. Cortesias e mesuras distribuídas a eleitores do homem que usou como tema de campanha a construção de um muro intransponível a separar os povos. O México faz parte da América do Norte apenas na imagem do globo. Nada mais. A águia com a serpente no bico ilustrada na bandeira mexicana, na visão dos personagens, exemplificaria apenas o animal em busca do desejo e não como ícone de imponência. No jogo de quem como o que, a águia de rapina norte-americana certamente sairia vencedora, ainda que da mesma espécie.
Esse mundo de bichos traz aquele que, talvez, seja o ponto mais destacável do filme: a analogia do cachorro e o lobo em forma de problema matemático. Nestor rumina a todo o instante o exercício escolar que o fez repetir de ano e, consequentemente, abandonar os estudos. Trata-se de um enigma que se presta a descobrir como um animal pode manter o outro preso e de que forma poderia haver uma fuga. O protagonista depara-se, por vontade própria, com a questão em diversos momentos, mas não consegue traçar um paralelo com a sua vida. Ao final, entretanto, vê-se como lobo. Mais uma prova de ingenuidade atroz. “Dias de inverno” poderia ter acabado cinco minutos antes que teria um final mais impactante e de acordo com o que foi desenhado ao longo de toda a trama, assim como é para um escritor – ou crítico de cinema – que não sabe como terminar o seu texto e acaba divagando sem necessidade.