Desvío de Noche
Na trilha que divide o real do ficcional
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
“Onde está a patinadora de gelo Violeta Martínez?”, essa é a pergunta que parece, ao menos inicialmente, conduzir a trama de “Desvío de Noche”, longa que se aventura nos limites do real e ficcional, muitas vezes levando o próprio espectador a questionamentos. Roteirizado e dirigido pela dupla Paul Chotel e Ariane Falardeau St. Amour, a obra se inicia a partir da procura de uma jornalista pela “chica del hielo” (a garota do gelo). A busca, no entanto, se distancia bastante dos gélidos rinques de patinação e se embrenha no clima quente e úmido da floresta que circunda a pequena vila em Oaxaca, México, onde ela nasceu e, supostamente, retornou após sua última apresentação.
A obra se inicia em um caráter assumidamente documental, em que essa jornalista vai ao vilarejo tentando desvendar o paradeiro da atleta antes promissora. Dessa forma, é ela quem guia o espectador, mas fora do campo, apenas pela narração e perguntas. Nessa investigação, a única certeza que ela constrói, a partir das entrevistas com os moradores, é a imprecisão, tanto de quem a patinadora é quanto de para onde ela foi. Alguns moradores negam conhecê-la, e os outros, que a conhecem, não têm a menor pista de seu destino. Portanto, tudo que a jornalista tem é um laudo inconclusivo para a pergunta que abre o texto. Os registros de escola, onde ela procura respostas, também não ajudam muito. Faz muito tempo desde que Violeta saiu da escola, não há nada lá. A busca pela patinadora lida também com a última carta, que cita um tal Armando, e encontrá-lo também não é tarefa fácil.
Apesar das similaridades com a linguagem de documentário, a narrativa de “Desvío de Noche” é ficcional, embora não inteiramente, de certa forma existe sim um registro antropológico daquela comunidade, que por mais que estejam interpretando empregam sua própria realidade nos diálogos. As entrevistas e a voz em off da jornalista são elementos que, cada vez mais, colocam o espectador em dúvida. Assim, reside neste aspecto a potência do longa. Ao penetrar os limites do real e ficcional, o filme se expande para uma espécie de docuficção. A escolha do elenco, composto majoritariamente – se não inteiramente – por não-atores, com performances extremamente naturalistas, também corrobora para essa dicotomia. Se esta fosse a única ruptura proposta pelo filme, a ficcionalização de um documentário, já seria interessante. Contudo, a escolha ousada em transformar o longa em um díptico, dividido no documentário da jornalista e nas divagações de um morador local, deixa ainda mais acinzentada essa zona do real e imaginário, tanto no contexto de produção quanto de narrativa.
Essa quebra de gênero é muito mais temática, em relação ao direcionamento do olhar, do que formal, uma vez que a mise-en-scène é bem uniforme durante o longa. Em um tom atmosférico e com um ritmo que preza pela dilatação do tempo, o filme lida com muitos momentos sem diálogo, não dá para chamar de silêncio quando só a voz humana se cala e o som exterior continua, com latidos de cachorros e cricrilar de grilos. A câmera da dupla preza, portanto, por longos planos, às vezes, estáticos dessa natureza, reforçando a imutabilidade do espaço. A composição estabelece também quase sempre uma divisão de superfícies, separando o primeiro do segundo plano com folhas ou grades, obstruindo a visão. Esse efeito simbolicamente também dialoga com a impossibilidade de alcançá-la.
“Desvío de Noche” é uma obra muito mais comprometida com as sensações e ambientação criada, do que com uma história, no sentido convencional. Nesse sentido, existe uma inclinação muito forte ao cinema do diretor tailandês Apichatpong Weereasethakul. A princípio, a própria ruptura em um díptico, com o letreiro que antecipa esse desvio, é uma referência quase direta ao longa “Mal dos Trópicos” (2004). Em um aspecto de direção, as filmagens na floresta densa e este tempo que parece não pertencer aos homens, mas à natureza, são características marcantes que aproximam o longa canadense da filmografia do tailandês. Assim como os fantasmas e as forças sobrenaturais que se manifestam no ambiente natural, sobretudo na segunda metade do filme. De qualquer forma, a comparação é injusta com os novatos Paul Chotel e Ariane Falardeau, diretores jovens mas que já evidenciam a preferência pelo vanguardismo, desafiando os limites entre real e ficcional e prezando pelo tempo muito mais contemplativo que imediato, o que exige, naturalmente, muito mais da paciência do público.