Desperado
Em busca do acaso livre
Por Fabricio Duque
Durante o Festival É Tudo Verdade 2020
Todo documentário é essencialmente sobre registrar histórias e memórias. Todo documentário é também dotado de uma intrínseca liberdade de abordagem, forma e criação artística. Todo documentário necessita ser antes de tudo um estímulo pulsão na homenagem e/ou na crítica. É um retrato editado do olhar real. O longa-metragem “Desperado” sobre vida e obra do “incauto” realizador Win Wenders, o mais americano “Oeste” dos alemães, consegue ir além e transcender quando atinge a mais pessoal e orgânica cinefilia. Nosso primeiro sentimento é o querer urgente de re-assistir todos os seus filmes. Esse documentário consegue resgatar a mais pura e nostálgica paixão pela imagem. Nós somos arrebatados com as primeiras emoções, quase o passional ímpeto dos “jovens turcos”, que se sentavam nas primeiras fileiras para receber o filme antes de todos.
Dirigido pelo australiano Eric Friedler (de “Blue Note Story – It Must Schwing!”, exibido no Festival In-Edit Brasil) e co-dirigido pelo alemão Andreas Frege (mais conhecido como Campino, vocalista da banda punk alemã Die Toten Hosen), “Desperado” é uma explícita ode biográfica a Win Wenders, conhecido pelos filmes “Paris, Texas”, “Asas do Desejo”, “Buena Vista Social Club”, perceptível nas cena inicial que tem Werner Herzog “rasgando seda” e enaltecendo o homenageado daqui (“Seus filmes retratam a nossa era, o nosso passado recente, é impossível imaginar o cinema sem a voz dele”). O espectador é conduzido pela desconstrução humanizada (com sarcasmo espirituoso – preste atenção à garrafa de água!), pelo fetiche-orgasmo de ter o próprio criador comentando as obras (não, não parecem extras de Bluray!) e principalmente por não medir liberdades ao expor conflitos idiossincráticos (Wenders versus Coppola).
“Desperado”, que recebeu a chancela do selo da edição 2020 (cancelada) do Festival de Cannes (o filme seria exibido na mostra Classics), integra o Festival É Tudo Verdade deste ano, sendo o filme de encerramento. A narrativa também desestrutura nossa percepção mais padronizada em relação aos documentários assistidos, muito por reconstituir cenas dos filmes de Win, trocando personagens pelo diretor, em cenários reais. O formato foge inclusive do hibridismo, reinventando um caminho livre demais ao aceitar que é o acaso o roteirista mais criativo. Entre o deserto de “Paris, Texas”, a biblioteca de “Asas do Desejo”, as ruas cenários, a música de Patti Smith, nós enxergamos Win Wenders como um inquieto “punk”, um perfeccionista “viciado em trabalho”, sempre à procura de novidades e atravessamentos. Se a forma técnica complementa a maestria do conceito temático, então a seleção convidado de entrevistados fornece a cereja do bolo, aumentando a importância do discurso contextual (sem esquecer das curiosidades “discórdias” do Set). Francis Ford Coppola, Willem Dafoe, Andie MacDowell, Agnès Godard, entre tantos outros por arquivo footage, todos compartilham definições e termos ao protagonista (por ser, com “vivacidade e rigor; clássico e moderno; persistência; obsessão”, um “lacônico” “navio à vapor que não para nunca” em sua “qualidade meditativa sobre o ser humano” de “poesia cinematográfica”, equilibrando ações, reações e “silêncios incômodos”), que sempre diz que “contar uma história é se aventurar, pois você só pode contar algo à sério se desconhece o final”.
Aqui, o filme busca captar o invisível, personificar a “sensação da estrada que leva todos”, o “perder o medo”, a “absorção da passagem” e ressignificar o “sentido do tempo/lugar”. “Quem ama muito, conquista muito”. E tenta responder a pergunta motora de Wenders de “O que é a Alemanha?”, porque desde criança sempre quis fugir para o “vulgar, noir e atmosfera cinema” Estados Unidos. Mas lá chegando, descobriu que talentos são podados para “caber na caixinha” “limitada” do pragmatismo e da obviedade dos frames. Quanto mais o “Desperado” avança mais é potencializada a admiração pela pessoa e pelo trabalho. Pela escolha de se direcionar aos documentários para encontrar a liberdade plena (e onírica) do não roteiro. “A queda livre o traz mais próprio do objetivo”, diz-se, entre cenas deletadas de seus filmes, mais uma vez lembrando ser extras de um DVD, contudo sem perder a potência, ritmo e criação.
Dessa forma, “Desperado” não é apenas um documento cinéfilo com cadência suficiente para prender o público, mas acima de tudo é um manifesto de amor incondicional à imagem, à História do Cinema e à liberdade da irrestrita criação, que nasce no momento de sua realização. A mensagem do filme tem como objetivo reacender a passionalidade cinéfila e gerar um documento de respeitosa verdade fidedigna (sem falsas condolências) com quem assiste e principalmente com o realizador, o responsável máximo (“deus” e “pai” de seus rebentos fílmicos).