Depois do Vendaval
Entre arquivos, memórias e sentimentos
Por Vitor Velloso
Durante o Festival Recine 2021
“Depois do Vendaval” é a continuação espiritual de “ABC Brasil”, de Luiz Arnaldo Campos, José Carlos Asbeg e Sérgio Péo, que retornam aos eventos de 78-80, agora tratando aqueles registros como memória. Embebido da carga saudosista dos grevistas e do que um dia representou a UNE, o documentário traça o que foram aqueles momentos, a partir de quem esteve lá, organizou e lutou. Com uma vasta quantidade de material de arquivo e uma trilha sonora que marca o tempo de suas passagens, a construção aqui procura narrar aquilo que as imagens são incapazes de expor, procurando nos depoimentos uma materialização do sentimento que permeia essas memórias, não por acaso as falas são tão emotivas e falam do orgulho de ter participado de tudo aquilo.
Porém, as narrações pausadas, a música sempre pairando e a montagem que salta de um arquivo ao outro, faz com que a experiência se torne arrastada, não apenas pelo caráter formal, mas pela falta de liga concreta com a contemporaneidade. O que acontece é que o longa sugere, assim como os entrevistados, em numerosas passagens, essa relação com o hoje, lembrando que o Brasil é um país com sucessivos golpes de Estado, que a manifestação do povo se encontra fragmentada etc. Sem sentir a necessidade da especificidade pedagógica, mergulha-se nas fragilidades, em um certo contraste geracional, que apesar de levar em consideração os distintos contextos, não parte para uma análise que consiga “conciliar” esses dois tempos. Assim, “Depois do Vendaval” acaba sendo um documentário que sabe exatamente o que quer dizer e para quem, mas não consegue sair de um certo ciclo de memórias, sem desenvolvimento posterior àquela materialidade da imagem ou dos sentimentos.
Ainda quando reconhece determinadas figuras que foram importantes para as greves ou na conscientização de classe, como liderança especificamente, se perde nesse jogo de emoções. Está certo que a intenção não era fazer um diagnóstico da realidade política nacional no Brasil de hoje, mas tampouco vai às vias de fato quando se retrata à 78-80. O que faz, e é algo relevante, é mostrar como essa consciência quebrava o consenso da ideologia e expunha que a maior parte das reivindicações dos metalúrgicos e estudantes, eram necessidades do povo também. Essa espécie de “bastidores da greve”, com falas interessantes sobre o “pós-greve”, funciona nesses momentos, como um registro histórico que ultrapassa a possibilidade de alcance do “ABC Brasil”, por razões óbvias. Aqui a comparação dos dois projetos não deve ser feita com rigor, apenas compreendendo que a diferença entre ambos é fruto de um amadurecimento dos três diretores, contextos distintos e fatos que agora fazem parte da memória.
De toda forma, nos melhores momentos de “Depois do Vendaval” é possível refletir sobre a importância de compreender a resistência contra a ditadura militar da época e avanço de uma extrema direita ao redor do mundo e na América Latina. Também não pode se desesperar com os discursos calorosos de fantoches institucionais, que se pavoneiam diante dos seletos grupelhos que estão na frente do castelo. Outra questão relevante que o documentário traz, é a necessidade de ação com a reflexão, e não apenas uma das duas coisas. Não por acaso, um dos entrevistados diz que “depois da greve o trabalhador nunca mais é o mesmo”. Nessas falas podemos encontrar uma força da obra, que não se reproduz, mas está em constante movimento e tenta acender na nova geração esse brilho nos olhos que foi dizimado pelo avanço das práticas de repressão, diretas, estruturais, econômicas e sociais. E por essa razão, um pouco mais de didatismo aqui poderia ser fundamental para libertar essas memórias de meras projecções que entrelaçam com os depoimentos, mas da força que esse vigor pode provocar.
Luiz Arnaldo Campos, José Carlos Asbeg e Sérgio Péo são nomes grandiosos para a história do Cinema Brasileiro e devem ser lembrados como tal sempre, a exibição de mais uma obra conjunta no Festival Recine 2021, mostra que ainda devemos muito a eles.