Cyber Hell: Exposing an Internet Horror
O inferno são os outros
Por João Lanari Bo
“Cyber Hell: Exposing an Internet Horror”, realizado em 2022 e produzido na Coreia, é preciso e pontiagudo como o imaginário tecnológico que associamos ao país de origem. Sim, se a Coreia do Sul é um dos países-campeões da inovação e da eficiência, também pode ser a matriz de uma devastadora pulsão predatória sexual, cibernética, para usar um termo moderno, embutido no título mesmo do documentário. A cibernética é o estudo dos processos pelos quais sistemas complexos (naturais ou artificiais) se organizam, se regulam e apreendem pela troca e circulação de informação: vem do grego, que remete a algo próximo de a arte de governar. O inferno cibernético: estamos num mundo novo, onde até o inferno surge como novidade, quase sensorial. A internet, a camada que se sobrepõe ao aqui/agora do fluxo de real que nos assola diariamente, a nova natureza que nos envolve e seduz, é o novo éter por onde as subjetividades cognitivas da humanidade se cruzam e se digladiam, se encontram e se multiplicam, para além do bem e do mal.
Que espaço é esse, onde os limites jurídicos são voláteis, incertos? São três décadas e pouco de internet, mas suficientes para desenvolver e trazer à tona perversões soterradas nas sombrias profundezas da alma humana, esquecidas dos vigilantes da moral, mas sempre aptas a incidir nos corações e mentes do velho mundo, esse das coisas sensíveis e dos fenômenos que conhecemos desde que nos constituímos como subjetividades. Ao acompanhar a história de vítimas (jovens, muitas vezes menores) de inacreditáveis chantagens – articuladas e viabilizadas através de salas de chat do Telegram – entramos em uma realidade paralela de crimes sexuais, onde mulheres e meninas são coagidas a enviar imagens e vídeos explícitos de si mesmas para ambientes virtuais de bate-papo, cujos “líderes” cobravam taxas de acesso para os milhares de usuários. Pontuado por depoimentos de jornalistas, policiais e investigadoras independentes, o filme se encaminha para o desbaratamento da rede e identificação dos responsáveis, dois jovens de classe média recém-saídos da adolescência – ambos com 26 anos, um condenado a 45 anos, outro a 34. Ao todo, a polícia investigou 3.500 suspeitos, e prendeu 245. O caso, obviamente, chocou o país, herdeiro de uma tradição confucionista que preza harmonia social inspirada nos ancestrais e na promoção de virtudes como retidão, justiça, sinceridade, fidelidade, humanidade e piedade filial.
A despeito do freio moral, a modernidade digital traz desafios insuspeitos para a vida na Coreia. O termo “molka” – câmeras escondidas ou câmeras espiãs instaladas secreta e ilegalmente, em pequenos buracos ou rachaduras nas paredes, em locais como banheiros públicos femininos e quartos de motel, com objetivo de capturar imagens e vídeos voyeurísticos – surgiu a partir de programa coreano de TV de pegadinhas, e atualizou-se para designar tipologia criminal de invasão de privacidade. Começando em 2010, a prática do “molka” disseminou-se rapidamente e granjeou grande número de adeptos, de todos os segmentos sociais. Banheiros públicos são ponto focal para o voyeurismo: os protestos generalizados de mulheres que não se sentiam seguras, inclusive com relatos de destruição de câmeras e vedação de rachaduras em paredes, levaram as autoridades de Seul em 2018 a designar 8 mil funcionários para inspeção dos 20 mil banheiros públicos da cidade – anteriormente eram apenas 50, em inspeções mensais.
“Cyber Hell: Exposing an Internet Horror” traz a pulsão voyeurística para a potencialização das redes sociais, apoiando-se numa captação íntima obtida mediante coação e intimidação. Com uma pitada de pimenta: a rede em questão é o Telegram, serviço de mensagens instantâneas baseado em nuvem, freemium e multiplataforma acessível globalmente, que oferece como opção chats criptografados de ponta a ponta, chamadas de vídeo, compartilhamento de arquivos e vários outros recursos. Lançado em 2013, superou em junho de 2022 cerca de 700 milhões de usuários ativos mensais: seu cofundador e proprietário de origem russa, Pavel Durov, adotou a cidadania dos Emirados Árabes e juntou uma fortuna, aos 37 anos, de 15 bilhões de dólares! Enquanto o WhatsApp tem um teto de 256 pessoas por grupo, o Telegram permite 200 mil, além de criar canais exclusivos de transmissão – combinado à privacidade absoluta que alardeia para seus clientes, tais facilidades acabaram atraindo o que há de melhor e de pior no mundo cibernético. Durov gaba-se de ter “driblado” os censores em Moscou, que desistiram de impor restrições ao aplicativo, em 2020: a meta agora, proclama, é direcionar nossos recursos anticensura para lugares onde o Telegram ainda é proibido pelos governos – lugares como Irã e China.
No Brasil, o Telegram, ameaçado pelo TSE de banimento com a proximidade das eleições, acabou cedendo e nomeando um advogado como representante. Na Coreia do Sul, não obstante, segue inteiramente livre. “Cyber Hell: Exposing an Internet Horror”, documentário pungente e certeiro, não dispensa maiores comentários a eventual responsabilidade do serviço nos crimes narrados. O inferno, afinal, parecem ser mesmo os outros.