Crônicas de Uma Jovem Família Preta
Ficar forte, juntos
Por Vitor Velloso
Muitas vezes, a simplicidade de um projeto pode ser seu maior trunfo, não apenas por não procurar estetizar seu objeto central, mas por sintetizar de forma direta e imediata todas as suas intenções. Sem a necessidade ou as amarras de ser esteticamente transgressor, o documentário “Crônicas de Uma Jovem Família Preta”, de Davidson D. Candanda (membro do Coletivo Siyanda), apresenta uma estrutura tão cotidiana quanto política ao expor a realidade de uma jovem família preta no subúrbio carioca.
Assim, o espectador é convidado a acompanhar o dia a dia de Hellena Claudia, Lucas Luigi e seu filho Dominic Sekani: suas conversas durante o almoço, brincadeiras com Dom, o trabalho dos pais e, claro, a preparação para a festa de aniversário de dois anos do filho. É particularmente satisfatório acompanhar a felicidade do casal em planejar a festa, mesmo com toda a dificuldade financeira e esforço envolvidos. Nesse sentido, a direção não cria nenhum tipo de artifício para complexificar essa trajetória. Acompanhamos um registro direto desse cotidiano, atravessado por alguns depoimentos para a câmera, passeios e brincadeiras com o pequeno Dom. É essa simplicidade que muitos documentários não conseguem reproduzir, pois tornam-se engessados ao elaborar recursos de linguagem para tornar o projeto mais “redondo” para o circuito comercial. Isso faz de “Crônicas de Uma Jovem Família Preta” algo tão especial de se assistir.
É ainda mais admirável que, em cada nova sequência, possamos ver o carinho e o amor dessa família, a reciprocidade dessa relação, a felicidade da criança com a demonstração desse afeto e como isso é capaz de tocar o espectador de forma instantânea através do sorriso de Dom.
Por outro lado, alguns momentos parecem relativamente encenados, o que, em geral, não é um problema, mas traz alguma artificialidade nos diálogos, como na cena em que Lucas conversa sobre família e “como o tempo passa rápido” com um amigo no local de trabalho. Ainda que a cena não seja encenada, há uma estranheza na condução dessa sequência que pode provocar alguma suspensão durante a projeção. Esse estranhamento não acontece tão frequentemente em outras cenas de conversas com personagens que habitam a vida social de Hellena e Lucas. Pelo contrário, algumas sequências são importantes para compreendermos suas inseguranças, desejos e medos acerca da paternidade, da sociedade e da realidade material que os cerca. Com certeza, esses momentos são cruciais para o funcionamento do documentário, pois nos aproximam da intimidade dessa família, demonstrando não apenas sua indubitável felicidade, mas também suas fragilidades particulares.
Em contraste, a força constantemente evocada pela negritude e o orgulho por sua identidade é capaz de construir uma das cenas mais belas do filme, quando Hellena arruma o cabelo de Dom.
Existem alguns elementos citados ao longo da obra que nunca ganham destaque na montagem, como o baile charme que aparece em algumas fotos no início do documentário, mas que são apenas mencionados em algumas conversas. Isso reduz a possibilidade de aproximação com o trabalho de Hellena, que, além de trancista, é dançarina, e com algo que Lucas realmente aprecia. Em apenas uma cena vemos Hellena ensaiando, mas o filme não nos mostra muito além dessa breve passagem.
“Crônicas de Uma Jovem Família Preta” é sincero e doce, não se propondo a nada além do que o próprio título explicita, ainda que reforce debates políticos, identitários e sociais que são cada vez mais necessários em um contexto brasileiro onde alguns representantes eleitos proferem falas verdadeiramente criminosas contra a população negra no país, chegando a afirmar que estas pessoas “não reproduzem”. Esse Brasil imaginário dos supostos representantes políticos, em um país onde a maior parte da população é preta, torna-se ainda mais ficcional e absurdo diante de projetos como este, dirigido por Davidson D. Candanda, que demonstra a resistência pacífica e cotidiana desse belo dia a dia que acompanhamos na tela.