Curta Paranagua 2024

Crítica: Vinte Anos

Viver a Vida Como Ela É

Por Fabricio Duque


A diretora carioca Alice de Andrade (de “O Diabo a Quatro”), cem por cento brasileira com alma cem por cento cubana, retorna às histórias do povo da nação-ilha mais populosa do Caribe. “Vinte Anos” é um reencontro intimista a esses personagens filmados ao longo de duas décadas, embrenhando-se em suas vidas cotidianas trajetórias amorosas, por suas micro-ações rotineiras com “graça e franqueza”.

Uma visita caseira, de portas abertas a este país nostálgico (pela radical conservação do passado), que está mais interessada em contemplar e observar estes seres que propriamente discursar sobre a política, questão inevitável quando se aborda Cuba.

O documentário conduz seu espectador pela organicidade de um mundo prestes a desaparecer para sempre, às vésperas de uma mudança radical e imprevisível. Quanto mais vivemos, mais temos a sensação de que estamos regredindo. Um verdadeiro paradoxo de “caranguejo”: andar para trás com toda soltura e possibilidades infinitivas do progresso.

Em vinte anos nós podemos perceber as mudanças destes atores sociais. Sua narrativa propositalmente popular, pessoal e livre aproxima-se à forma de construção cinematográfica de Eduardo Coutinho, que possui como característica principal o cinema direto. É um panorama imagético. Um recorte fragmentado de tipicidades cubanas, da Nicarágua, Costa Rica, Alamar.

Pela presença intercalada de imagens em Super8, fotos antigas, depoimentos, acontecimentos paralelos (o casamento do antes e o novo do agora – que traçam uma análise crítica de épocas transmutadas), pela passionalidade sentimental dos instantes e pelas filmagens em lugarejos de concretista atemporalidade. Um desses o mesmo cenário do curta-metragem “Se Por Acaso”, de Pedro Freire.

“Vinte Anos” é um “filme que passa num país que parece que o tempo não passa”. E que não busca romantizar com ares turísticos Cuba, tampouco Miami, Costa Rica, lugares também revisitados. Aqui, Havana não é um produto como em “Sete Dias em Havana”, de Benicio del Toro, Gaspar Noé, Laurent Cantet, Julio Medem, Elia Suleiman, Pablo Trapero, Juan Carlos Tabío (uma versão franquia da série cidades homenageadas).

Muito menos é uma radiografia. É sobre vivências humanizadas e afetivas com suas fisiologias. Mais à moda de “Morango e Chocolate”, de Tomás Gutiérrez Alea, Juan Carlos Tabío; “Uma Noite”, de Lucy Mulloy; “Viva Cuba”, de Juan Carlos Cremata. Mas estas são apenas inevitáveis inferências, visto que o documentário, em questão aqui, imprime sua própria e ímpar veia autoral.

As histórias, por detalhes e emoções, versam sobre os que “abandonaram” a ilha para viver na América, “terra das oportunidades” e os que lutam em permanecer. É sobre o passado e o agora, que por lógica já passou pela urgência do tempo. Como a de uma cubana que foi tentar a vida (no “aperto”) em Miami e trabalha como faxineira. E o dólar que domina.

Cuba chega a ser uma galáxia à parte. É a máxima do verdadeiro cuidado, de um governo que se preocupa com seu povo. Que fornece uma saúde de qualidade, que disponibiliza de graça os medicamentos e até mesmo o dinheiro para que o paciente retorne a sua casa. É a concretização do socialismo. Sim, mas precisamos levar em conta que nenhum lugar é perfeito, porque cada um de nós pensa de maneira plural e imitada.

“Vinte Anos” é acima de tudo um filme de uma amiga sobre seus amigos. Como por exemplo, abraço de uma personagem na diretora. Tão espontâneo que sentimos a carinhosa e desmedida felicidade do reencontro. E como ser jovem em Havana. Nascer na escassez econômica e ansiar por mudanças. Estas histórias são contadas pela pureza e inocência não encenadas, como o encanto ao “sujo de cimento”.

É uma Cuba viva, local e de integração. Sem sensíveis colocações politicamente corretas. É a vida pura e simples. Sem muitas expectativas consumistas. De ingenuidade existencialista. Com seus bibelôs e ursinhos de pelúcia. E alegria nas pequenas ações. De ensinamentos expertises “perspicazes” de homens e os tratamentos às mulheres. É popular na essência. Lembranças, intimidades, danças e memórias da “raiz da amargura”. Com seu sincretismo religioso, suas inferências políticas e “parques abandonados”.

“Vinte Anos” é um documentário em construção. Nem um pouco definitivo. De um arquipélago decadente em ruínas. Com a televisão de tubo que sofre com interferências chuviscos por causa da chuva. Que agora os moradores podem vender e comprar apartamentos (“Perderam o respeito pelo dinheiro”, diz-se sobre os preços altos). É o novo processo. Da adaptação aos tempos modernos. É o dinheiro versus a calma da não preocupação financeira. As inúmeras opções de produtos versus a necessidade limitada do usar. É o mais básico e primitivo princípio do minimalismo. Viver com pouco e mais feliz.

Cuba, que significa lugar amplo onde a terra fértil abunda, única nação no mundo que recebeu a definição da WWF de desenvolvimento sustentável, confronta-se agora com o estímulo externo desenfreado do consumismo, que alimenta com a ideia de que para ser feliz é preciso sempre de novas aquisições materiais. É um documentário que capta a alma desta República. Retira-se o que de exótico e mergulha na realidade do cotidiano. Como a oportunidade, na Costa Rica, de uma personagem que participa da ópera Carmina Burana. É uma ode ao local. De abrir as janelas e ter o mar como vista, enquanto finaliza com “É bom chegar a casa”, embalado com a música “Crocodilo Verde”, de Caetano Veloso.

3 Nota do Crítico 5 1

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