Desperdício de arquivo
Por Vitor Velloso
Durante o É Tudo Verdade 2019
A partir do interior de determinadas personalidades, somos capazes de enxergar o que está atrás da máscara, ou parte disso. Demagogos são figuras curiosas não só em um cenário político, mas também de uma construção de persona bastante peculiar na sociedade, por isso, atraem a atenção de diversas pessoas a compreenderem o fenômeno que concretiza a potência dos mesmos, enquanto ícones maiores que ideologias e questões gerais. Putin é sem dúvida um acontecimento na história do século XXI, parece datado, mas busca determinadas mudanças no cenário político e econômico que impactam o mundo inteiro, com suas nacionalizações etc. Ao mesmo tempo é imagem central no debate à moralismos arcaicos que regeram o século XX.
Vitaly Mansky teve a oportunidade de trabalhar diretamente com o presidente durante o início dos anos 2000, em sua primeira eleição, logo após ser nomeado presidente com a renúncia de Boris Iéltsin, por isso possui um acervo de imagens de Putin, bastante… único. Com sua câmera caseira, Mansky constrói uma imagem bastante íntima do político, acompanhando ele durante seu movimento inicial para campanha presidencial, momentos mais amenos, como uma viagem de carro que ele revela sentir falta de poder soltar do carro e pedir uma cerveja em seu sossego. O material possui uma quantidade interessante de fragmentos, que somados aos trechos com Iéltsin, desenha de maneira precisa os bastidores daquela virada de século com mudanças radicais na Rússia. Ao mesmo tempo gera um desafio ao cineasta, encontrar dentro daquela estética, a partir de questões formais e temáticas, uma construção que ampare os verdadeiros desejos da produção. Neste quesito o longa cai em algumas armadilhas, como os excessos de intervenção com voiceover que o diretor utiliza. Mas além disso encontrar dentro destas filmagens, aquilo que pode acrescentar diretamente na construção da imagem das duas personalidades, principalmente Putin, mas acima de tudo, no processo criativo da realização do documentário.
E nestas questões decisivas onde o diretor deve refletir sobre as objetividades de sua obra, é onde o filme possui mais deslizes. Uma utilização da trilha sonora pouco criativa e extremamente repetitiva, uma tentativa de Michael Moore durante uma sequência onde Putin deveria reencontrar sua ex-professora. Todas essas tentativas não se sustentam, promovendo um exercício um tanto canhestro na maioria da projeção, que acaba se salvando por pequenos trechos que apenas ele poderia ter capturado, graças sua relação direta com o político. E novamente, as narrações off do cineasta são de uma exposição que não acrescenta em nada ao longa, pelo contrário, torna o processo cinematográfico todo um tanto excessivo, didaticamente e monotonamente. As consequências disso são óbvias, temos um projeto que pouco diz, menos pensa e mais quer ser direto em uma construção que gera desníveis assombrosos em blocos do filme.
Em todos os níveis “Testemunhas de Putin” não impressiona, nem possui a autocrítica de manter-se em um plano que pouco explora o material precioso que possui em mãos, com abordagens distintas seria possível alcançar um estudo psicológico complexo do político, mas parece contentar-se com a mediocridade do senso comum e flexibiliza tudo o que constrói a olhares pouco atenciosos de cada plano. O desinteresse massivo do público é um crescendo com o progresso da projeção, pois a extensão da minutagem nos mostra que a intenção não é flexionar à imagem e a estrutura em um compendium crítico do próprio autor e daquela figura política, mas vangloriar-se de manter arquivos que datam de quase duas décadas como um retrato dos primórdios do governo Putin, o que convenciona as verdadeiras intenções artísticas, em pueris estratégias de convenção narrativa a fim de pautar-se de uma contemporaneidade (que não está presente no material) para alçar-se à um patamar de relevância.
Qualquer diretor deveria olhar àquilo que possui em mãos e ter senso crítico, até mesmo do tempo onde foram realizadas aquelas filmagens, que não passam de datados registros que são montados de maneira quase leviana. A necessidade de manter esses arquivos diante do público é a maior glória que vemos aqui, de longe, pois tratando-se do produto final, vemos um belo desperdício de um material ainda mais interessante.