A ironia da metalinguagem
Por Michel Araújo
Durante a Mostra Cavídeo 21 Anos
O discurso político contido no cinema é tido pelos teóricos da academia como um dos detentores de maior potencial construtivo efetivamente pela capacidade da sétima arte de replicar a realidade, numa aproximação com a teoria aristotélica da “Poética” e o reconhecimento do espectador de si na obra. O realismo – ou naturalismo – se estabeleceu historicamente como a “linguagem padrão” do cinema, e consequentemente os instrumentos realistas cinematográficos se refinaram numa inflação da potência de transmissão objetiva e subjetiva tanto de emoções através da catarse artística como de fundamentos ideológicos através da construção de sentido do filme em seu conteúdo – diálogos, temática, narrativa – e em sua forma – montagem, regras de enquadramento, cor e iluminação. O teórico brasileiro Jean-Claude Bernadet faz referência ao cinema como “arte do real” nesse sentido, e em seu livro “O Que É Cinema” aponta as potências formadoras de opinião da sétima arte. O ponto chave, portanto, para nosso juízo crítico acerca de “Sigilo Eterno – O Filme Que Salvou a Humanidade”, é o descompromisso abismal com quaisquer fundamentos para a prática do discurso político cinematográfico, estando o arco principal da obra inserido num formato narrativo realista.
Como um todo, o longa brasileiro pode ser considerado um filme-ensaio acerca da causa ecológica, contendo excertos de documentários, telejornais e mesmo outros longas de ficção. A narrativa principal acompanha um ativista da velha geração tentando se reaproximar de uma antiga amante para que ela participe de seu filme. O diálogo inicial da obra é extremamente marcante por suas características técnicas fotográfica e sonora. O trabalho de iluminação e pós-produção de fotografia aparenta ausente, quer ele de fato tenha sido realizado ou não. A qualidade da captação de áudio – possivelmente realizada com o microfone interno da câmera – aniquila qualquer traço de realidade dramática, mantendo o espectador permanentemente consciente de estar assistindo a uma obra amadora. A atuação mecânica e superficial dos personagens coopera para a total ausência da possibilidade de imersão na obra, além de tornar o foco do espectador no discurso do roteiro um exercício cansativo ao ponto de ser inútil. Inclusive é notável o trabalho de dublagem nas tomadas em ambiente externo, visto que a sincronização de áudio e vídeo falha visivelmente. A primazia técnica desse primeiro diálogo se mantém pelo restante da obra, portanto qualquer agrado ou desagrado com a qualidade cinematográfica dessa primeira sequência já é capaz de definir a opinião do espectador sobre o restante do filme.
Para além dos problemas formais e técnicos, o roteiro e construção dramática da obra não aparentam qualquer clareza objetiva, visto que nada o público é capaz de apreender de forma científica ou artística. A mera menção a estatísticas da indústria agrotóxica no Brasil não traz impacto ou epifanias ao espectador, quer ele esteja alheio ou inteirado sobre o assunto. Montagens com excertos documentais não trazem à luz a realidade de forma conclusiva, mas contribuem, contudo, para o entorpecimento e uma potencial alienação do público ante as imagens de violência à que são expostos num contexto tão vago e estéril. O trecho em que cenas de “Barravento” de Glauber Rocha são utilizados inflama ainda mais a dúvida acerca da consciência ou não da equipe autora de “Sigilo Eterno” do cinema brasileiro sincero e crítico, e do que buscam com a realização deste cinema que carece de adjetivos positivos.
Deve-se, entretanto, nutrir esperanças quanto a única possibilidade de enxergar alguma afirmação pontual na obra, que seria da auto-referência nos tornar conscientes das potenciais fraquezas de um cinema político desordenado e vazio. Por vezes os diálogos contribuem para essa possível leitura: quando a protagonista feminina se coloca como independente e não concorda em participar do filme do ativista, afirmando que não deseja ser um “boneco de ventríloquo” – visto que na vida real essa atriz o está sendo, pela lógica de seu discurso; quando uma colega do protagonista chama seu filme de “metalinguístico” – o que traz, portanto, à luz essa possibilidade; e especialmente na cena final quando a neta do protagonista masculino afirma que “a humanidade vai melhorar, independente do seu filme”, o que, com sorte, pode uma alusão do “filme que salvou a humanidade” a si mesmo e sua completa obsolescência para a política e o cinema brasileiros. Essa digressão na interpretação de uma possível metalinguagem irônica, entretanto, é apenas uma fagulha de fé na ínfima chance do filme não ser o miasma criativo que quase certamente é.
O propósito da obra se mantém indeciso entre o universal e o particular. O anseio é pela conclusão da narrativa dos personagens? É pela exposição da realidade agroindustrial brasileira? Há momentos em que depoimentos em inglês e espanhol sequer são creditados ou legendados, numa desconsideração com uma parcela significativa da população brasileira que nem ao menos tem acesso à educação básica e alfabetização. O filme, então, é feito para que público e com que propósito? Se nos mostra a real necessidade de luta do trabalhador do campo exibindo o relato de um membro do MST, o público alvo certamente não haveria de ser o jovem de classe média ou classe média-alta do Sudeste, o qual nada se insere na luta do campesinato. Por fim, escapam entre nossos dedos quaisquer motivos para estimar “Sigilo Eterno” como de qualquer forma relevante, quer como arte, ou instrumento político.
3 Comentários para "Sigilo Eterno"
Querido professor cineasta Noilton, muito obrigada.
Assisti seu “filme que salvou a humanidade”, na escola ocupada Pedro II, do Humaitá.
Sou estudante de uma outra escola pública que fica no subúrbio
de São João de Meriti.
Confesso que ainda estou dominada pelas suas mensagens em sons e imagens.
A personagem principal me encanta.
Quando crescer quero ser como ela: uma diplomata, uma ativista ecológica…
O diálogo do começo do filme, dela na Europa com o ex-amante no Rio, já deixa os
espectadores bem interessados no que vai acontecer, pois é muito bem articulado e os atores são ótimos.
Ela, a Heloisa é linda demais.
Depois a montagem vem trazendo surpresas e mais surpresas
numa intensidade que me deixou “pasma”…
Eu não sei quase nada da Rio 92, nem do Xingú, nem do Santo Daime, nem de Chernobyl,
da ilha de plástico no meio do Oceano Pacífico…
Fiquei com muita vontade de ler, de saber sobre tudo isso…
Preciso ver seu filme outras vezes, pois o que é dito no filme
em diversas sequências transborda na minha mente.
Parabéns.” Carmem Manoela de Assis – Estudante
A difícil e amorosa construção do bem comum
O filme SIGILO ETERNO, do cineasta Noilton Nunes, é um filme-manifesto. Um brado de alerta contra o perigo da destruição da Mãe Natureza e da própria vida em nosso planeta Gaia, caso não aconteça uma desaceleração na sociedade de consumo, uma diminuição da exploração intensiva dos recursos naturais, além de providências eficazes contra a poluição do ar, da água, dos alimentos. Jorram no filme as imagens que comprovam o desequilíbrio dos ritmos da natureza: tsunamis, secas, miséria, poluição…
Natan e Heloísa viveram um caso de amor no passado. Comunicam-se apenas por telefone, os corpos não se encontram mais no espaço. Uma situação emblemática da dificuldade de materializar o amor entre homem e mulher, que, no entanto, permanece resiliente como um fantasma. A distância entre os dois sinaliza a dificuldade do entrelaçamento entre inteligência e afeto, entre cérebro e sexualidade. Porém as ações de ambos no mundo – ele é cineasta com consciência ambiental e ela uma diplomata que luta na Organização das Nações Unidas pelo fim da destruição da Natureza – mostra que está em jogo no mundo de hoje um amor maior, o amor pelo coletivo, o amor que constrói o bem comum. Algo semelhante ao poema Hino à Vênus, do poeta romano Lucrécio, que nos mostra uma deusa dividida entre o amor impessoal, programado mecanicamente pela Natureza, e o amor pessoal pejado de ilusões que colocam em risco a ausência de dor e a completa ausência de perturbações da mente defendidas pela doutrina epicurista adoptada por Lucrécio. O poeta desvela suas lutas interiores e, pretendendo combater os seus medos, opta por uma visão fria, “científica”, mas previsível, do amor, em detrimento de um amor-ilusão, contingente, logo incontrolável. Possibilitaremos, porém, a Lucrécio, como outros estudiosos já o fizeram, o benefício da doutrina epicurista do clinamen, do “desvio imprevisível dos átomos que se chocam”, evento que pode provocar uma mudança de mentalidade, o que permite uma abertura para o amor como liberdade e criatividade, que é afinal o amor humano.
A diplomata Heloísa, encarna ao mesmo tempo a Natureza, a ação política das mulheres que se empoderam politicamente para enfrentar as mazelas do patriarcado, e que por isso podem se tornar porta-vozes do Papa Francisco em sua encíclica Louvado sejas, que enfoca os cuidados necessários com nossa casa comum, o planeta, abordando temas como a mudança climática, a dívida ecológica, a questão da água, a crise ecológica e as mudanças que se impõem em nosso estilo predatório de vida.
O outro personagem, o cineasta Natan, encarna o artista criador com consciência política e social, o brasileiro criativo que está sempre com escassos recursos para materializar suas obras. E aqui lembramos novamente Toni Negri: “Não foi a riqueza, mas a pobreza que significou o nome comum do humano. De Cristo a São Francisco, dos anabatistas aos revolucionários sans-culottes, dos comunistas aos militantes do Terceiro Mundo, os necessitados, os idiotas, os infelizes (ou seja, os explorados, os excluídos, os oprimidos) foram signo do eterno. Sua resistência e suas lutas abriram o eterno para a desmedida do porvir. A teleologia e a ética do materialismo sempre estiveram ligadas a essa comunidade nua e potente que é a pobreza”. Portanto, como nos adverte Toni Negri, é a partir da pobreza que é possível construir o bem comum.
“Fazer política” no biopolítico pós-moderno é, antes de mais nada, resistir e rebelar-se. Mas é, ao mesmo tempo, exprimir um sujeito que, tensionado entre pobreza e amor, decide a luta pelo bem comum. Fazer política é sair do domínio do poder constituído do Estado para fazer brotar um poder constituinte de baixo para cima, capaz de produzir novas temporalidades e novos espaços comuns, cooperativos, nos limites do ser, fazendo brotar a inovação amorosa que dá pleno sentido ao que é comum.
Por tudo isso, SIGILO ETERNO, filme de baixo orçamento e produzido no melhor estilo gambiarra, pode fazer justiça ao seu slogan: o filme que salvou a humanidade.
Mário Margutti Jornalista
Quando um produtor tenta defender um filme com argumentos de outras pessoas, é que o negócio ta feio mesmo. Me desculpa, mas o filme é um desastre. Os atores assustam o público, a câmera é feita por alguém do fundamental, a montagem corrói o bom senso. Me perdoe, mas nada aí salva. Michel está certíssimo. Adoro o Cavi mas esse negócio aí não dá não, se eu fosse crítico seria menos carinhoso ainda.