O ser humano em contato com a Natureza
Por Pedro Guedes
Durante o Festival do Rio 2018
Comandado pela mesma Debra Granik que dirigiu “Inverno da Alma” (o filme que revelou Jennifer Lawrence), este “Sem Rastros” é um daqueles longas que comprovam que o Cinema – e a Arte em geral – tem uma capacidade singular de levar o espectador a se colocar no lugar dos outros e enxergar o mundo a partir de um ponto de vista diferente. No caso desta produção, o resultado serve como um estudo antropológico curioso, já que gira entorno de dois personagens que há muito parecem ter se afastado do conceito de civilização (seja lá o que ela significa) e vivem no meio da Natureza.
Escrito por Granik ao lado de Anne Rosellini (também de “Inverno da Alma”), o roteiro (baseado no livro “My Abandonment”, de Peter Rock) acompanha Will, um veterano de guerra que atuou no Iraque e voltou aos Estados Unidos carregando uma série de feridas psicológicas (entre elas, o famoso Estresse Pós-Traumático). Com isso, o sujeito resolveu se distanciar das grandes cidades e levou sua filha Tom para ser criada numa floresta, desfrutando de recursos naturais para sobreviver. Tudo começa a mudar depois que as autoridades descobrem como os dois estão vivendo e decidem mandá-los para instituições capazes de “corrigi-los” – o que, claro, não dá certo, já que tanto o pai quanto a filha estão mais habituados à Natureza do que às cidades.
Imaginar um estilo de vida onde os costumes de uma sociedade industrializada são rejeitados é, para boa parte do público, uma tarefa difícil. Como sobreviver sem os prazeres oferecidos pelo capitalismo (e que, no mundo em que vivemos, deixam de ser “prazeres” e se tornam prioridades de fato)? Neste sentido, “Sem Rastros” lembra de leve o ótimo “Capitão Fantástico”, que também era protagonizado por um pai que criava seus filhos numa floresta; mas as comparações param por aí, já que os dois projetos são bem diferentes em termos de tom, atmosfera e narrativa. Assim, o filme é bem-sucedido ao deixar claro para o público que existem estilos de vida completamente diferentes daqueles que ele está habituado a conhecer – e mais: quando Will e Tom são forçados a abandonar a Natureza para tentar retornar ao mundo civilizado, o espectador sente a dor daquele processo justamente por compreender que ele machuca a essência dos personagens.
Assumindo um caráter naturalmente político ao contar com a presença de um ex-militar atormentado pelos traumas oferecidos pela guerra (o que automaticamente pode servir como uma crítica à maneira como os Estados Unidos tratam seus veteranos), “Sem Rastros” é ancorado por duas performances centrais dignas de nota: Ben Foster se sai surpreendentemente bem ao ilustrar os conflitos internos de Will, que quer ao mesmo tempo preservar seus ideais e respeitar as vontades pessoais da filha; e Thomasin McKenzie encarna com precisão a intensidade que se espera de uma adolescente, mas adicionando à sua persona as particularidades de alguém que cresceu em uma realidade diferente (leia-se: no meio de uma floresta).
Já a direção de Debra Granik encontra o tom certo para uma narrativa como esta, investindo em uma abordagem estética fria e em um ritmo relativamente pausado e contemplativo – e percebam, por exemplo, como a câmera parece disposta a invadir o espaço ocupado pelos personagens e aproximar-se deles a fim de extrair cada uma de suas emoções. Para isso, a fotografia de Michael McDonough passa a desempenhar um papel fundamental, já que aproveita ao máximo as paisagens florestais e reconhece que a Natureza é um ambiente complexo que pode tanto aconchegar os personagens quanto sufocá-los. Em contrapartida, é uma pena que, nos momentos que mostram Will cortando árvores junto a um grupo de lenhadores, Granik e McDonough subitamente adotem uma câmera de qualidade nitidamente inferior à média, o que quebra a coesão visual da obra.
Por fim, vale apontar que a montagem de Dickon Hinchliffe mostra-se correta ao “amarrar” todos os eventos relatados ao longo da narrativa e estabelece seu ritmo de maneira satisfatória (ainda que peque ao encerrar a projeção com um fade out horroroso que traz os créditos finais à tona de forma deselegante). Saindo-se admiravelmente bem ao definir o arco dramático de sua protagonista, que aos poucos começa a questionar o estilo de vida imposto por seu pai, “Sem Rastros” funciona como uma boa visão antropológica e leva o espectador a se interessar por personagens que não se encaixam em nenhum tipo de lugar-comum. E isto, por si só, os torna tão fascinantes.