Peçonha lenta, mas mortal
Por Filippo Pitanga
Durante o Cine Ceará 2018
Que filme fantástico é “Petra” de Jaime Rosales, terceiro filme na competição de longas do 28° Festival Cine Ceará em Fortaleza!
Além de contar com uma narrativa naturalista que corta cirurgicamente com frieza a base cênica do melodrama de perdas e inverdades familiares, com sobriedade de lágrimas ou colapsos nervosos, é com a frieza de um romance policial que este drama sobre alienação parental vai de Rohmer a Chabrol num piscar de olhos, com toques de Mia Hansen-Løve.
A maior diva espanhola da atualidade, Barbara Lennie, que praticamente se especializou em escolher roteiros de reviravoltas humanas de caráter duvidoso, como em “A Garota de Fogo”, “Um Contratempo” da Netflix e “Uma Espécie de Família, vem a se juntar agora ao retorno triunfal e paciente da deusa Almodovariana Marisa Paredes que com uma personagem ataráxica vai dar o bote final nos segredos que o filme resguarda para alcançar ou não uma catarse recompensadora – dependerá do espectador.
A obra estreou este ano na Quinzena dos Realizadores e chega no Cine Ceará para tomar a competição de jeito. Dizer qualquer coisa sobre a trama é estragar muitos plot twists e o desenvolvimento de personagens, cheia de mitos gregos contendo suas próprias tragédias e destinos internos… Mas resta dizer que o fio condutor segue a jovem interpretada por Bárbara que investiga um segredo do pregresso de sua mãe moribunda. A teia de mentiras e jogos emocionais onde irá resvalar talvez seja mais do que ela estaria preparada para aguentar. Ou não…e a força poderia estar desde o início dentro dela, como um legado.
Em termos práticos a apresentação da história se divide em capítulos não necessariamente lineares, quase sempre sim, mas deslocando uns 2 capítulos de trás para a frente. Nada que embaralhe a cabeça do espectador. Contudo, ao mesmo tempo, fica o único questionamento ao filme neste departamento onde poderia ter tentando ousar um pouco mais. Tanto que os capítulos são tão bem divididos e montados exemplarmente que, ao acabar de se assistir o filme, a ordem em que eles foram dispostos poderia ser desafiada em várias cronologias mais desafiadoras e descoordenadas que ainda assim continuaria inteligível e talvez até mesmo mais complexo e gratificante. Ainda assim, uma mise-en-scène elegante que se alimenta das inercias e da introspecção das personagens, convidando o espectador para refletir junto com eles. Tanto que o filme em si usa de pouquíssima trilha sonora, com exceção das cenas de corte, na transição entre sequências, onde geralmente um dos personagens está sozinho e a música entra como metáfora de seus pensamentos interiores. A música aumenta de volume de acordo com o que esta pessoa esteja raciocinando possa aumentar as tensões pro clímax. Sem falar nas câmeras giratórias, irrequietas, que não param em quase nenhum momento, especialmente nas cenas internas, como se contornasse os corpos que não conseguem conter o alcance de suas ações. Como, por exemplo, o uso tardio da personagem de Marisa Paredes, que orbita o sistema solar de sua família parecendo desperdiçada para apenas se revelar útil quase no final, nos mesmos moldes da inércia com que o tempo parece afetar cada capítulo isoladamente, ou seja, como peçonha de cobra: lento, mas mortal.
Petra é uma mulher que não conhece o pai e decide procurá-lo após a morte de sua mãe. A busca a leva a Jaume, um artista famoso e homem poderoso. Mas Lucas e Marisa, filho e esposa de Jaume, também acabam cruzando seu caminho. É a partir desse momento que uma série de segredos de família vêm à tona e atitudes violentas levam todos ao limite.
Um filme de aparência extremamente simplista, mas que devora cada canto improdutivo ou morto entre tempos e transforma em catalisador das transformações e perdas das inverdades do dia a dia. São as perdas e danos peçonhentas de uma família eclodindo na formação do indivíduo e na catarse geracional.