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Crítica: Os Miseráveis [2012]
A Imponência Maniqueísta das Cores Cantadas
Por Fabricio Duque
Antes de mais nada, preciso avisar ao espectador, mesmo soando prepotente e ou altamente arrogante de minha parte (pedindo desculpas já de antemão), que o filme “Os Miseráveis” é um musical do início ao fim de sua duração. Não há diálogos inseridos de fala coloquial. Tudo o que se transmite é pelo tom musicado, tendo a cantoria gravada ao vivo, sem a utilização da dublagem posterior. E se, o gosto por esse gênero não for apreciado, peço, humildemente que não vá assistir. Digo isto, porque houve incidentes (como risos defensivos, conversas paralelas e exaltações do “não estou gostando”) na própria cabine de imprensa. Não estou julgando, apenas fornecendo uma dica. O filme em questão aqui apresenta-se como um musical filmado, mais falado que em tom ópera, típico das produções da Broadway. O longa-metragem é uma adaptação, do roteirista William Nicholson,  ao romance homônimo do escritor francês Victor Hugo, publicado em 1862, retratando indivíduos minoritários, vivendo existências miseráveis e convivendo com a opressão aristocrática do poder. A história, traduzida em três atos teatrais, característica típica das apresentações “culturais” daquela época, mostra, respectivamente, a tragédia e a morte da esperança; a perspectiva salvadora do acaso da vida; e a vitória libertadora, mesmo pela morte física. A vida, definida como cruel, mitiga a fantasia da pureza (e da crença  da felicidade das relações humanas) e destrói qualquer possibilidade futura, realizando a necropsia visceral da realidade. O autor nos indica apenas o caminho maniqueísta. O certo ou o errado. O bom ou o mau. Este julgamento apresenta uma ironia tão sútil, que somos induzidos a questionar nossos próprios princípios morais. Uns criam a defesa de conservar as ideias manipuladas pela sociedade ditatorial e outros recebem a ajuda humanitária para encontrar a ética pertencente no fundo da alma. De um lado, o “profissional da lei”. Do outro, a transição à redenção da pacificidade. O inspetor Javert (Russell Crowe, de “O Gladiador”) tenta fazer com que todos cumpram as determinações legais, porém as dúvidas geram o confronto questionador, buscando a salvação de si mesmo pelos outros, como um suicida que teme a morte. Já o protagonista,  Jean Valjean (Hugh Jackman, de “Wolverine”), por roubar um pão a fim de que pudesse alimentar a irmã mais nova, é preso e passa anos na prisão de trabalhos forçados. Os dois vivem o antagonismo translúcido da metamorfose ética. Mas o contraste do resultado os une e fornece um mesmo ponto de vista em tons diferenciados de sofrimento. Um não consegue compreender logo de cara; o outro é testado com doses cavalares de percepção contextual. O epifanismo  representa o fio condutor desta novela teatral. O ditado popular “dê pão e circo ao povo e a felicidade reinará” é corroborado pelos elementos da Revolução Francesa. A ópera indicava a nobreza, mas também a fantasia da plebe. A opção musical de “Os Miseráveis” simboliza a suavização da tragédia, configurando a experiência que o espectador ganha de plenitude histórica, podendo vivenciar o desejo de sobrevivência deste período. Os revolucionários chegaram ao consenso que despertar o sentimental do povo pelo exagero musical (dos hinos e discursos) era a solução definitiva para que pudessem brigar pelo pão nosso de cada dia. A morte era inevitável, mas vinha repleta de significados. Um deles, a conservação do antídoto à destruição das crenças intrínsecas. Há outra máxima popular que diz “Um soldado não foge da guerra”. Era um embate contra a “crueldade” da vida, mencionada anteriormente. Eles não tinham opção. Lutavam contra o preconceito, a falta de oportunidade, a escassez empregatícia, a fome, as pestes, ao submundo sujo e desdentado. Precisavam vender os próprios cabelos, os corpos e até os dentes, por míseros trocados, aprendendo a sobreviver como podiam. A “revolta” já se instaurava logo de início. Sem dignidade, “bolavam” truques para roubos, ora patéticos, ora desesperados, ora hipócritas. A história também mostra o núcleo cômico com Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, que suavizam ainda mais toda tragédia apresentada. Há Anne Hathaway (de “Mulher Gato”) sofrendo as “alfinetadas” da vida. Há o núcleo romântico, personificando a esperança de um futuro vitorioso, com Amanda Seyfried (“A Garota da Capa Vermelha”) e há o núcleo revolucionário. É inegável a estrutura novelesca, porém neste caso apresenta-se imprescindível a vertente escolhida. Precisa-se ser grande, megalomaníaco, exagerado. O diretor britânico Tom Hooper (que já  ganhou o Oscar por “O Discurso do Rei”) recusou o convite para fazer “O Homem de Ferro 3” para que pudesse realizar o filme em questão aqui, escalando um elenco premiado, famoso, com conhecimento musical (como Russel Crowe que já foi vocalista de uma banda) e que funcionou, por causa da cumplicidade entre eles, da não utilização do egocentrismo e principalmente da entrega interpretativa que cada um buscou e imprimiu em seus papéis. Concluindo, um filme de quase três horas, musical por completo e que restaura em quem assiste os princípios morais que se perderam na convivência desumana dos dias de hoje. Então sem julgamentos, por favor.

  • Profundamente irônico, intrinsecamente sarcástico, antiteísmo velado.
    Descritivamente correto e sem ilusões cinematográficas.
    Ótimo e amargurado texto. Melhor impossível !

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