Um Filme Que Nós Amamos
Por Fabricio Duque
“O Estranho Que Nós Amamos”, filme de 1971, dirigido pelo americano Donald “Don” Siegel (de “Os Assassinos – The Killers”, “Vampiros de Almas”), estrelado por Clint Eastwood (seu parceiro de sucesso em “Meu Nome é Coogan”, “Perseguidor Implacável”) e Geraldine Page, é baseado no romance, de 1966, “A Painted Devil”, de Thomas Cullinan, trazendo o gênero literário “Southern Gothic – O Gótico do Sul” (um romantismo obscuro), obras que exploram, no lado sulista americano (uma crítica social pelo naturalismo sinestésico aos acontecimentos trágicos e desumanos do passado, como a escravidão e o tratamento às mulheres) um tom sobrenatural incomum, advindo de personagens profundamente falhos, perturbados, excêntricos, sistemáticos, rígidos, hipócritas moralmente, que interpretam papéis de gênero ambivalentes, solitários, defensivos, ciumentos, de traumas psicológicos e loucuras “despertadas” de uma psicopatia maldosa, diabólica, cruel, vingativa e punitiva, desencadeando eventos sinistros desconfiados e ativamente violentos, brutais, sem culpas e viscerais, decorrentes da pobreza, da alienação (principalmente religiosa), do medo do abandono e do desejo sexual à flor da pele que precisa ser domado.
O título original “The Beguiled”, cuja tradução literal é “O Enganado”, “cutuca com vara curta”, extremamente direto em sua narrativa e conteúdo, questões incutidas, latentes e urgentes para serem questionadas em uma época massificada por rótulos, por regras unilaterais e pelas consequências de uma falta de expectativa. Em sua abertura com os créditos, fotos desbotadas, em sépia, de uma guerra “tão próxima” com um “aviso de não ser mais um soldado”. E assim, nós somos “aprisionados” em metáforas, confrontando paradigmas e fantasias protetoras, como a história de uma menina, uma “Chapeuzinho Vermelho” (quase a “Vampira”, de “X-Men”) que encontra o “lobo” (um muito parecido “Wolverine” – impressionante a semelhança com o personagem de Hugh Jackman), um soldado inimigo Yankee, que está machucado, e o leva para a casa-escola em que vive, estuda e “aprende francês, uma língua alegre”. Esta miúda (“a versão feminina de Deus”), que já aprendeu a lidar com a “imoralidade”, parece não se importar com a possibilidade do “amor a primeira vista” quando recebe um “salvador” beijo “pedófilo” (com sinos divinos).
Outra questão é que estas mulheres, que “sobrevivem” nesta casa (que mais infere ao cenário de “E O Vento Levou…”, de Victor Fleming, George Cukor e Sam Wood), sozinhas e aparentemente frágeis (adjetivo este pelo clichê do imaginário popular), sem uma figura masculina protetora, com a presença de uma escrava “respondona” (que de forma afiada diz que o “convidado” também é um “escravo da guerra”), ficam desconfiadas com um medo de serem violentadas, mas logo percebemos que seus desejos sexuais “assanhados”, necessidades fisiológicas que não são atendidas a tempos por causa da guerra, sobressaem-se, gerando uma teia de ciúme, desespero, loucura, passionalidade, histeria, vingança e a briga pelo homem, o “bendito fruto entre as mulheres”.
Próximo do término da Guerra Civil Americana, um cabo ianque é ferido gravemente na perna durante um tiroteio em Louisiana. Recolhido a um internato feminino confederado, sua presença faz com que as mulheres que vivem isoladas ali há anos e escondidas da guerra, professoras e alunas, entre o som da harpa, atmosfera bucólica e incesto, passem a sofrer todo tipo de efeitos, desde o temor do inimigo (“um intruso”) ou de serem acusadas de traição por acolhê-lo, até fantasias de amor e sexo numa atmosfera de sexualidade reprimida (estas sensações ouvidas telepaticamente de seus pensamentos), rechaçada por outra metáfora “das galinhas que há muito tempo não botam ovos”.
O machismo invertido, uma obrigação altiva, enérgica, libertária e feminista, “oferece”, inicialmente com “charminho”, “vinho para a dor e não ao prazer”. Os flertes intensificam-se. E pela sutileza das interpretações, nós podemos dissecar sentimentos, desejos, entregas, verdades, vulnerabilidades, sonhos, orgias, amputações (física e ou moral) e perigos-tramas de mulheres traídas que o condenam a “amargura, violência, embriaguez” e liberdade eterna. “Não se junte a nenhum exército”, finaliza-se, fazendo com que pululemos referências a Kathy Bates e sua “Louca Obsessão”, de Rob Reiner.
“O Estranho Que Nós Amamos” é irretocável e imperdível, e foi exibido na Sessão do Cramulhão, nesta terça-feira, tudo como um “esquenta” por ganhar uma refilmagem do filme homônimo, nas mãos da diretora Sofia Coppola no qual também assume a produção juntamente com seu irmão, Roman Coppola, que será exibido na mostra competitiva oficial a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2017. O filme tem em seu elenco: Elle Fanning, Kirsten Dunst, Nicole Kidman, Colin Farrell, Angourie Rice e Addison Riecke. Sofia, talvez seja a mais indicada e confiável para tal responsabilidade, pela diversidade estética de seus trabalhos, que provavelmente, serão mesclados no remake: “Virgens Suicidas” com “Marie Antoinette”. Vamos aguardar!