A triste catarse de um Brasil exaurido
Por Pedro Guedes
Era inevitável que um filme como “O Doutrinador” viesse a ser produzido. Para começo de conversa, os super-heróis hollywoodianos estão dominando cada vez mais o dia a dia do público médio, o que é mais do que o suficiente para levar o brasileiro a criar sua própria fantasia onde um cidadão comum resolve fazer justiça com as próprias mãos. Mas este nem é o detalhe mais significativo: antes de ser um “filme de super-herói”, “O Doutrinador” é o reflexo de uma sociedade que se acostumou a enxergar todos os políticos como verdadeiros párias e está farta de ver museus pegando fogo, pessoas morrendo em filas de hospitais, faculdades públicas abandonadas e vítimas cada vez mais numerosas do crime organizado.
Toda obra é concebida dentro de um contexto e, de uma maneira ou de outra, pode ser encarada como uma manifestação política. Para Éric Rohmer, todo bom filme é também um documento de sua época. Que “O Doutrinador” é o documento da época em que foi feito, não há como negar. Se o filme é bom, aí é outra história…
Baseado nos quadrinhos criados por Luciano Cunha em 2008, o longa se passa num Brasil com traços claramente fictícios e acompanha Miguel, um agente da D.E.A. (“Divisão Armada Especial”) que vive insatisfeito com a corrupção presente no governo de São Paulo (e do país inteiro). Depois que sua filha é acertada por uma bala perdida e morre no hospital graças à falta de um médico que pudesse operá-la, o sujeito decide caçar os políticos que desviam dinheiro público para a fim de torrá-lo à vontade. Com isso, Miguel esconde seu rosto com uma máscara de gás que exala uma luz vermelha de seus olhos e passa a ser conhecido como o Doutrinador. Sempre que ele executa um político, a população pressupõe que se tratava de um corrupto (que merecia morrer?).
Não há como negar: “O Doutrinador” é, sim, um pequeno vislumbre de como anda o povo brasileiro em um período tão caótico quanto este. Quando Miguel leva sua filha ao hospital e percebe que não há sequer um médico que tente salvar a vida da menina, o espectador se lembra dos hospitais públicos que estão destruídos por causa de uma verba que deveria ser investida na saúde, mas que foi desviada através da corrupção. Da mesma forma, os políticos conseguem se eleger graças ao dinheiro conquistado a partir do Caixa 2 e mentem descaradamente quando alguém questiona as péssimas condições de seus governos, o que leva o povo a se manifestar contra estas administrações. Em outras palavras: “O Doutrinador” é um retrato de como o brasileiro está de saco cheio do que vem acontecendo – e a cena que encerra a projeção pode representar um sonho molhado para quem acredita em medidas extremas (e violentas) para “limpar” a classe política.
O que não significa, claro, que o filme seja necessariamente bom. Aliás, de um ponto de vista puramente ético/moral, “O Doutrinador” é bastante questionável: mesmo sem se identificar com uma obra de esquerda ou de direita, este longa é um mau exemplo para uma sociedade que já está acostumada a enxergar todos os políticos como “farinha do mesmo saco”. Propagando a ideia de que governantes em geral são naturalmente atraídos pela corrupção, o protagonista executa quem é ficha-suja sem perceber que isto não resolverá problema algum. Além disso, o Doutrinador caça estes “políticos do mau” sem se preocupar com as provas entorno destes, fazendo uso somente da sua capacidade de identificar quem merece ou não morrer (alguém merece, de fato?). Para que o espectador aceite este tipo de premissa, ele teria apenas que confiar na infalibilidade de um super-herói simplesmente incapaz de eliminar alguém que tem a ficha limpa por engano, o que, convenhamos, não é muito realista.
Pois é claro que não dá para generalizar: existem pessoas honestas envolvidas no mundo da política – e enquanto não houver uma única prova de que um cidadão está comprometido, não é permitido espancá-lo ou matá-lo apenas por… estar envolvido no mundo da política. Este tipo de discurso (que afirma que “todos os políticos são iguais”) certamente contribuiu – e muito – para que o Brasil mergulhasse de cabeça na polarização que o conduziu ao clima de ódio que infelizmente impera no país; o que por si só deveria fazer “O Doutrinador” tomar cuidado com as ações catárticas que pretende retratar. Existem, sim, alguns momentos onde o diretor Gustavo Bonafé até tenta sugerir que o personagem-título não é muito mais do que um maluco egoísta movido pela vontade de se vingar, mas de que isso adianta se, no fim, ele passa a servir de inspiração para um país que, como o próprio filme diz, carrega a corrupção como parte endêmica não só da classe política, mas da sociedade como um todo?
E este é o principal problema de “O Doutrinador”: a maneira tola e infantil com que desenvolve os vilões e os heróis da trama. Basicamente conversando através de frases de efeitos imbecis construídas a partir de palavras-chave que se tornaram frequentes nos últimos anos (“cura gay” e “caixa 2” são apenas dois exemplos), os políticos corruptos que marcam presença aqui são criaturas nefastas que parecem ter saído de algum episódio do Batman de 1966 (o que dizer daquele infeliz que gargalha sadicamente ao contar o dinheiro que recebeu?). Já o Doutrinador em si é um herói chato e desinteressante que, vivido de forma excessivamente artificial por Kiko Pissolato (sua cara de raiva/indignação é um exemplo fidedigno de canastrice), se resume ao velho arquétipo do “homem que resolve virar um justiceiro depois que sua família é assassinada” (quantas vezes já não vimos este tipo de história em dezenas de filmes, séries e quadrinhos?). A diferença é que, desta vez, a tal vingança está direcionada para os políticos corruptos do Brasil.
Já as cenas de ação – que costumam ser um dos aspectos mais esperados em um filme de super-herói – são dirigidas por Gustavo Bonafé de maneira confusa e desorganizada, limitando-se a uma coleção desagradável de cortes rápidos, movimentos de câmera tremidos e planos fechados demais (o que sacrifica o resultado destas sequências, já que o espectador torna-se incapaz de compreender e curtir a ação mostrada na tela). Além disso, a suspensão da descrença do espectador é quebrada quando, ao colocar a máscara do Doutrinador pela primeira vez, o protagonista subitamente se transforme em um especialista do parkour capaz de escalar a fachada de um palácio. E afinal, por que uma luz vermelha emana dos olhos da tal máscara de gás sempre que Miguel a coloca sobre seu rosto?
Em compensação, “O Doutrinador” se sai particularmente bem ao construir seu universo fictício, que, mesmo situado num Brasil que reflete os dias de hoje, não deixa de incluir alguns detalhes criativos que sugerem uma estética lúdica que chega bem perto do cyberpunk – e o design de produção mostra-se inspirado neste sentindo, encobrindo os prédios de São Paulo com imensos telões coloridos que inevitavelmente remete à distopia apresentada em Blade Runner. Para completar, a fotografia de Rodrigo Carvalho investe em cortes vibrantes que, de certa maneira, remetem de leve aos dois capítulos da série John Wick, levando o roxo, o verde e o amarelo a se encontrarem com elegância em vários momentos.
Notavelmente influenciado pelos filmes de super-heróis que Hollywood produz e lança sem parar (porém re-contextualizando suas origens para o atual cenário político e social brasileiro), “O Doutrinador” não é um desastre, mas está mais próximo disso do que de se tornar o novo paradigma do Cinema nacional. E para constatar isso, não é preciso levar em conta a “pilha errada” representada por este longa.