Curta Paranagua 2024

O Barco

Artesão pictório dos relevos do tempo

Por Filippo Pitanga

Durante o Cine Ceará 2018

O Barco

Diante da tentativa de desmantelamento cultural da atual administração pública, na crise política existente desde o que se convencionou socialmente a denominar de “o Golpe”, e diante da redução de várias conquistas públicas como os editais de fomento à cultura nos mais diversos territórios brasileiros, é muito significativo que o filme de abertura da mostra competitiva de longas-metragens do 28º Festival Cine Ceará seja “O Barco” de Petrus Cariry. A obra se passa na praia das Fontes no Ceará, onde se situa as falésias, uma das maravilhas que a natureza legou ao Brasil, com formações de areia e rochas multicoloridas, declarando politicamente a importância da viabilidade e da valorização artística do território nordestino na cultura brasileira. O próprio Petrus, cineasta natural do Ceará e de equipe também predominantemente local, como uma verdadeira família, consanguínea ou não, possui uma filmografia que reivindica este lugar de patrimônio histórico que toda a região e seu folclore possuem. – Para quem não conhece o que são as falésias e estiver lendo esse texto neste momento, é altamente aconselhável que se busque no Google pelas imagens de tirar o fôlego, e que, antes mesmo de se enunciar sobre o que a história do filme versa, já é o bastante para situar o espectador em que tipo de deslumbramento visual ele irá se encontrar.

“O Barco” é o primeiro longa-metragem de Petrus após ele encerrar a trilogia imediatamente anterior composta por “O Grão”, “Mãe e Filha” e “Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós”, filmes que lidavam muito fortemente sobre a morte e a questão da herança familiar nas tradições que nos impelem ou nos castram no tempo. Aliás, apesar de a morte e a herança familiar continuarem como coadjuvantes na composição do cenário do presente filme, é o tempo e as tradições que realmente irão irromper aqui como protagonistas. Petrus talvez seja o maior artesão atual dos relevos do tempo a dar contornos e dobras de forma fabular à imagem e som, dentre os cineastas brasileiros, fazendo com que suas obras sejam mais do que filmes e sim uma verdadeira aula de imagética temporal. Cada imagem, cada corpo, cada personagem e cada som são partes de uma linha dimensional onde tudo acontece ao mesmo tempo. Pura metafísica coletiva, pois é um filme de uma reunião de profissionais em sinergia, como Rosemberg Cariry e Bárbara Cariry, além de outros colaboradores de vários projetos em conjunto como Firmino Holanda (que também co-assina o roteiro com Petrus e Rosemberg, além da montagem), Sérgio Silveira (diretor de arte), e vários outros nomes recorrentes em seus trabalhos.

A trama na teoria pode ser resumida de forma bem simples: inspirada no conto homônimo do escritor Carlos Emílio Corrêa Lima, a história se passa numa vila de pescadores isolados de qualquer contato com o mundo exterior. Isso até que um barco naufraga na praia, trazendo uma jovem mulher que parece saber mais do que aparenta, a qual passa a contar histórias que seduzem e ao mesmo tempo assustam os pescadores, à beira de uma possível mudança radical em suas vidas. Porém, falar apenas da sinopse é não compreender o mundo de metáforas e simbologias poderosas que o filme irá tratar.

A protagonista Ana, por exemplo, interpretada como uma ninfa mística por Samya de Lavour, é uma versão da sereia vinda do mar cujo cântico hipnotiza e atrai os pescadores, tanto quanto é uma Sherazade cujas histórias irresistíveis abrem as cortinas do mundo sem sair do lugar. Cortinas estas, aliás, tanto literais quanto metafóricas, pois a personagem tem seu corpo desnudo coberto apenas por mantos e trapos com os quais ela vai se descortinando, feito uma tela de cinema pintada à luz e sombras em sua pele, por trás da telona onde tudo se projeta. A analogia com o próprio cinema dentro do filme na imagem da cabana onde ela se instala é tão forte que cada personagem acaba se enquadrando como uma parte consistente do realizar cinematográfico. Todos os personagens possuem tons e camadas fabulares, especialmente a família principal. O pai (Nanego Lira) não fala pois se emudeceu pelas agruras da vida, mas é onipresente. A mãe (Verônica Cavalcanti) sofre o emudecimento imposto pelo pai, mas é quem descobre o poder das palavras escritas que podem nomear uma vida desconhecida para além do que lhe é seguro ali, e ela teme isso. O filho (Rômulo Braga) possui a letra “A” como nome próprio, a primeira letra do alfabeto, o que poderia significar um estímulo para poder ser tudo e qualquer coisa, mas mora com a família no fim do mundo que esqueceu de suas origens e não sabe mais sair de lá… E o personagem do “cego” interpretado de forma inescapável na trama por Everaldo Pontes numa caracterização soberba, ante luz e sombras, feito um quadro.

Tudo neste filme parece um quadro. Das cores e direção de arte aos figurinos e iluminação, até a escolha de locação e paisagens naturais capturadas de maneira cheia de tensão, distantes do que se poderia esperar do ponto paradisíaco que significam: o mar, o vento, as falésias… são todos personagens que agregam conflitos e prisões, ao mesmo tempo em que podem ser obstáculos a serem transpostos para a ressignificação da liberdade, em que o barco do título é apenas um meio, e não um fim. Os elementos fantásticos e fabulares nas narrativas de Petrus flertam com o terror e horror psicológico, como no soberbo trabalho anterior do cineasta, “Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois”, que também contava com Verônica Cavalcanti e Everaldo Pontes no elenco, parceiros de longa data. O diretor tem a capacidade de metaforizar o que está acontecendo com o mundo ao redor destas ambientações fantásticas que existem dentro da tela sem nunca se dissociar do que está fora dela. Um exemplo é sentir em metáforas até bem diretas a sensação de impotência e censura que o povo brasileiro anda passando politicamente transpostos na situação do infinito sem destino dos pescadores tolhidos de escolha. A sereia que veio do mar relata casos de abusos de gênero contra a mulher e de sobrevivência mesmo diante das maiores adversidades e humilhações, o que em muito descreve a situação em nosso país desde o Golpe.

Diante desta situação onírica, a narrativa alude a uma construção temporal além do espaço-tempo, através de 3 linhas do cronológicas: o infinito da criação do mundo nas belíssimas praias cearenses das Fontes, com as formações rochosas das Falésias; o tempo do espectador através da fábula contada pela personagem Ana, uma sereia Sherazade do mar, e também pelos efeitos sonoros; e o tempo metereológico, do qual a fotografia e iluminação do filme dependem 100% da natureza ao redor para gerar o encanto e o assombro. Pode parecer um pouco hermético como uma verdadeira aula de cinema para os não iniciados na continuidade contada através dos vários filmes de Petrus, mas isto porque não é um universo para se ficar sendo explicado, e sim sentido. De modo lúdico, com pegada sombria do subconsciente humano que escondemos de nós mesmos, o espectador pode ou embarcar nesta jornada dos sentidos ou não, mas deve se deixar aberto à experiência, senão corre o risco de perder algo único apenas pela intimidação superficial.

A sereia à la Sherazade supracitada, por sinal, é quem vai devolver a própria possibilidade de todos os personagens narrarem suas histórias, e, mesmo com um pano de fundo tão violento e vulnerável, é de sua sensibilidade à vida e suas vicissitudes que ela se torna a personagem mais forte e transgressora que irá possibilitar o rompimento com a realidade dos demais. O dicionário será ‘escrevivência’ para nomear a existência, e a escrita a ocupação do espaço geográfico ao redor tomado para si, de objeto para sujeito. Afina, não há nada que dobre o tempo de forma mais pungente do que os contornos das letras ao escrevê-las, de linhas retas em semicírculos e voltas… A escrita pode ser revolucionária, e narrar o que se vive ao vivenciá-la é talvez o ato mais emancipatório que há. E, neste sentido, a potência fabular de Petrus e sua equipe em torcer os relevos do tempo através da geografia de corpos no filme é quem devolve ao eterno das paisagens humanas a capacidade curativa do sonhar.


O CONTO (NA ÍNTEGRA)

de Carlos Emílio Corrêa Lima

(Do livro de relatos Ofos ( Nação Cariri Editora, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 265 pags, desenhos de Tarcísio Garcia, capa e contracapa ,aerógrafos de Ricardo Nobre, Fortaleza, 1984),transformado e adaptado para cinema,num filme longa-metragem de ficção, pelo diretor Petrus Cariry)

O barco surgiu de uma expectativa. Sua arquitetura lembrava caligrafia feita com cuidado. E como todos os barcos era simétrico e todos estavam certos de que deslizaria. O barco na praia, sendo construído sistematicamente, tocado pela areia e moldado pelo vento era um objeto novo, sem marujos, desabitado, mas por sua inclinação, semi-enterrado na areia, a silhueta em foco contra o crepúsculo… era secular. Tornara-se o centro, o ponto das conversas, o alvo das risadas, a louça perfeita no café da manhã, e todos o visitavam, a conversar com os construtores numa interminável conversa de praias. Pedro Buarque era pescador notório mas ia ao alto mar por melancolia e nunca se interessou por aquele novo evento, aquela coisa mágica. Tudo aquilo lhe cheirava a estilo, a perfeição. Um barco que navegaria, que seria a eternidade. Cuspia no chão e mudava de assunto. Depois era gente formada em técnicas de flutuação, em artes de navegar, gente de fábula, gente que folheava livros retangulares cujas páginas esvoaçavam brincando com o ar azul. Gente de quem se desconfiar e a quem lançar o descrédito. Pedro Buarque gostava de sal, de auroras no mar.

Sua mulher, Esmerina, teve o caráter e a vida toda prefixados em seu próprio nome. Diz-se que aprendeu isso com um avô ou um fantasma (o que hoje já nao faz diferença). Primeiro, quando aprendia a soletrar, pronunciou a palavra que se fixou daí por diante em seu coração ou na parte mais central de seu corpo ou consciência. O único nome que lia e compreendia era aquele, porque de fato nunca aprendera a ler e por isso sua vida não se bifurcou em novas palavras. Talvez por isso sua linguagem fosse uma tradução límpida das coisas imersas no ar ou contidas nos leitos dos rios. Sua vida tinha uma arquitetura fonética própria, palavra do parto à morte, e seu destino era conter-se e redesenhar-se por todo o tempo,pela natureza, através dos símbolos e da fertilidade. Foi uma mulher gerada do nome, parida pela palavra, personagem único na história do mundo e que depois tornou-se amante de Pedro Buarque. E eles dois tiveram filhos, mais de vinte filhos desorganizados.

Alguns eram a cópia da mãe, outros a transcendiam e eram a cópia de Pedro Buarque. Foram gerados geometricamente durante cerca de vinte anos ou mais, como uma escadaria. Vieram da cólica, do espaçar de gozo, e foram entregues à amplidão. No filho inicial, uma menina que usava tranças e os olhos para escutar, a brisa oceânica fez um ruído ao perpassá-la que era a forma do corpo dela e que soava como o espaço entre uma pedra e uma árvore, espaço que ela em sua mais antiga recordação cruzou como se transpõe uma linha, fato que criou continuidade obrigatória e que, indiretamente, motivou um amor circular e feroz entre Pedro e Esmerina que a acompanharam com o olhar através da baía durante quase toda a existência deles. O segundo filho também foi tocado como uma corda pelo vento, som da consistência do gado somado aos campos. E esse filho juntou-se à irmã e os dois tornaram-se a primeira sílaba de filhotes. Houve um que morreu porque pertencia ao futuro e às profundezas do mar. Esse não teve conotação sonora. No terceiro ano nasceu uma nova criança que falou antes de contemplar as ondas e que depois de ser tocada pela brisa de tao espantada deixou de ouvir.

A quarta, quinta e sexta criança, brincando, vindo do crepúsculo ou da aurora, pela praia, não significavam nada quando estavam juntas. E os anos se passaram, lentos e de dentro deles brotaram os filhos. O último já nao sabia da irmã inicial.O mais ou menos do meio esquecera os extremos. Só o exatamento do meio usava o passado e o futuro como asas. E quem falasse dos filhos de Pedro Buarque e Esmerina os mencionava sempre em conjunto como se estivessem tratando de algo fundamental e primitivo. Por toda a vida Pedro Buarque e Esmerina perderam três filhos e outros que não estão na conta e que ficaram na memória. Talvez a ordem cronológica não fosse a genética e só pudéssemos compreender todos os filhos do casal em associações mais complicadas. Esse com a árvore. Aquele dirigindo o barco. O outro que ao ler iluminadas praias, ao ouvir milhares de vozes, jamais percebendo a existência no mundo dos homens, da palavra t. Uma das crianças desenhando uma caletral e num momento solene, submerso, a caletral já construída, gritando determinado som para povoá-la, Os outros ajudando o pai nas grandes viagens, a quilha do barco tosco melodicamente atravessando a água. E cada filho era uma letra do alfabeto. Não é fácil seguí-los no espaço, no tempo e no amor. Estão em histórias do mar, de dilúvios e grandes secas. Seus passos diluem-se e ressurgem no ar etéreo, na água, no pó, na humanidade. Os pesadelos de Esmerina povoaram-se do prenúncio do incesto entre seus filhos letras. Mas isso não ocorreu. Não havia seres mais saudáveis no mundo. A associação para se darem palavras não ocorreria somente através do sexo.

Simples troca de olhar, avanço de cores, reunião, acarretaria um novo vocábulo, que seria pronunciado inconscientemente num apertar de mãos ou num momento de ódio. E havia milhões de outras mulheres e homens, na Terra, que eram outras línguas, proliferando infinitamente. Nada havia a temer, A possibilidade de novas combinações era incontrolável. Talvez fosse por isso que não desejasse a construção daquele barco perto de sua palhoça. Detestava esse tipo de construções silenciosas, monumentais, silhueta de montanhas. Era um homem simples, apesar dos filhos e da mulher, palavra feita carne num dia de muita chuva, num dia de criação. Um barco de vidro, à beira da praia, talhado como diamante. Nascido da própria praia. Areia cozida pelo sol. Inventado das ondas, quem sabe não se transformará em água. Mineral e secular, tentar-se-á torná-lo possível e resplandecente. A tentativa é batizá-lo concha. O vidro polido, cerâmico, vindo dos sonhos. O barco tornar-se-á invisível porque já está no mar. A maioria dos habitantes da aldeia ainda vêem suas linhas negras, só as linhas externas, de contorno, recortando, que são as formas, pauta sensível. Barco cerebral, a brisa, esse cântico azul, o marulho, o apagam. Talvez seja o horizonte. Esmerina e mesmo Pedro Buarque estão na boca do povo talvez por necessidades mitológicas, do próprio tempo. São pronunciados como argila. É sinal de que continuam na Terra.

4 Nota do Crítico 5 1

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