Drama superficial
Por Pedro Guedes
“Meu Anjo” poderia ser um grande filme. Ainda na primeira cena, a diretora Vanessa Filho revela uma mãe e uma filha deitadas à cama e declarando o carinho que uma sente pela outra. Trata-se de um momento delicado que inicia a projeção com a dose certa de ternura – e mais à frente, a mãe presente neste prólogo revela-se ausente e irresponsável, o que sugere uma ambiguidade curiosa para a personagem: como ela pode ser tão amável com a filha e, ao mesmo tempo, demonstrar tamanha inconsequência ao criá-la? Infelizmente, o potencial dramático da obra é desperdiçado pela superficialidade do roteiro e da direção, comprovando de uma vez por todas que algo como “Projeto Flórida” não acontece todos os dias.
Exibido pela primeira vez no Festival de Cannes deste ano, “Meu Anjo” é não apenas dirigido, mas escrito por Vanessa Filho. O longa começa mostrando o cotidiano de Marlène, que passa a maior parte do tempo bebendo e se divertindo em festas, porém raramente se dedica à criação de Ellie, sua filha de oito anos. Num certo dia, a mãe simplesmente desaparece e deixa a menina sozinha em casa, o que a faz sair por aí pedindo ajuda. Nisso, Ellie conhece Julio, que logo desenvolve uma relação afetuosa com a garota e acaba tornando-se quase uma figura paterna para ela.
Lendo esta descrição, parece que o sumiço de Marlène é o conflito que liga o primeiro ato ao segundo, desencadeando toda a trama que vem a ser enfocada pelo longa. O problema é que “Meu Anjo” não é particularmente bem resolvido ao definir a estrutura de sua narrativa. Assim, Vanessa Filho gasta mais de uma hora para se concentrar no dia a dia problemático de Marlène e Ellie, reservando o conflito em si para depois da metade da projeção. Além disso, quando Julio é finalmente apresentado e começa a desenvolver sua amizade com a protagonista, o espectador percebe com frustração que o filme já está prestes a terminar – e o resultado disso não poderia ser diferente: as relações entre os personagens e os arcos dramáticos de cada um deles acabam soando apressados e superficiais demais.
Aliás, este é o grande pecado de “Meu Anjo”: embora até seja possível dizer que as personagens passaram por uma transformação ao longo da narrativa, o espectador entra e sai da sala de cinema sabendo bem pouco sobre elas. Sim, Ellie é uma menina socialmente desajustada, Marlène é a mãe irresponsável e Julio é o bom moço que passa a se importar com a primeira, mas… o que mais conhecemos sobre suas personalidades? Por que Marléne se comporta de um jeito num momento e de outro mais à frente? Que fim leva o beijo apaixonado que um menino dá no rosto de Ellie? Por que os colegas e os funcionários da escola onde a garota estuda não parecem se importar quando ela finalmente retorna às aulas, depois de sumir por uns dias? E quem, afinal, é Julio? São estas inconsistências que comprometem a experiência como um todo, pois o público torna-se incapaz de “embarcar” nas situações retratadas na tela.
Dirigido por Vanessa Filho de maneira desnecessariamente fria e distante, “Meu Anjo” falha em construir o drama de forma natural e convincente: na maior parte da projeção, a cineasta parece querer adotar uma abordagem mais crua ao enfocar o cotidiano das personagens, como se o espectador devesse apenas contemplar o que está vendo sem se envolver emocionalmente. Não funciona, pois o máximo que Filho consegue fazer é criar um filme… chato, insosso, estéril. E quando a diretora resolve mergulhar nas passagens mais emotivas da trama, o resultado soa tolo e artificial – o que dizer, por exemplo, do momento onde Ellie percebe que Julio sente falta de um “coração” e decide compensá-lo desenhando um em seu peito?
Apelando para pianos e violinos sempre que deseja emocionar o espectador (um recurso óbvio e barato para cineastas que querer construir um draminha fácil), “Meu Anjo” contando com atuações esforçadas, porém comprometidas pela fragilidade do roteiro: Alyine Aksoy-Etaix se sai bem ao encarnar as feridas emocionais que são carregadas pela pequena Ellie (é possível que esta atriz venha a desenvolver uma carreira interessante daqui para frente), ao passo que Marion Cotillard mostra-se bem mais limitada do que de costume e exagera na hora de ilustrar como Marlène é “festeira” e inconsequente.
No fim, “Meu Anjo” é somente isso: um drama superficial que tenta convencer o espectador utilizando métodos fáceis e básicos, o que culmina em um imenso potencial desperdiçado.