Meu Amigo Fela
Potência política em tempos de resistência
Por Vitor Velloso
Durante o É Tudo Verdade 2019
Fela Kuti. Há muito o que ser dito sobre ele, mais ainda a ser debatido. Revolucionário, músico, poligâmico, sobrevivente etc. A vastidão de adjetivos que podemos utilizar a Fela é infinita. A dimensão de seu impacto no mundo é tamanha que um desafio que Joel Zito Araújo tinha à frente era impedir que seu filme “Meu Amigo Fela” fosse atropelado pela magnitude de seu material. Então, o diretor opta em fazer uma abordagem que mantenha o caráter de músico abaixo do revolucionário, ainda que ambos, no caso dele, sejam semelhantes, já que suas letras possuíam uma efervescência intensa. Essa escolha dá ao cineasta uma possibilidade de apoiar-se estruturalmente em uma pessoa, para que haja uma âncora que guie com relativa precisão os caminhos que Joel pretende tomar, essa pessoa é Carlos Moore.
Não há ninguém melhor para guiar-nos que Carlos, que possui uma biografia de Fela escrita, era seu amigo pessoal e já trabalhou diretamente com Malcolm X. Então, nosso anfitrião tece um caminho bem específico para contar essa história, o veremos primordialmente como músico, desenvolvendo-se um revolucionário e então um extremista. O material original do filme são as entrevistas do Carlos com outras pessoas que conviveram com Fela, dessa maneira a grande maioria do documentário são imagens de arquivo, utilizadas aqui com um brilhantismo único. Uma quantidade assustadora de material, mas que condensa bem aquilo que deve-se usar dentro da proposta de Joel e a partir daí vemos a montagem decolar com uma cadência insana, respeitando as imagens com que trabalha e sendo hábil em momentos musicais utilizar-se da animação a fim de ressaltar a letra da música, ainda que haja poucos momentos de shows no longa.
Em “Meu amigo Fela”, é interessante ver como o diretor traça seu processo de construção fílmica com um olhar crítico que se dá através de sua montagem, onde joga alguns argumentos contrários na tela buscando dar ao espectador a livre opinião. Isto gera uma consequência determinadas reflexões de complexidade tamanha, que são abordadas durante a projeção, não possuem desmembramentos profundos, pois o diretor não intervém de maneira tão rígida na forma e permite que o assunto seja esgotado dentro da própria imagem. Uma opção, claro, mas que enxuga um pouco a visceralidade de Fela. Essa consciência crítica que temos diante das personalidades está presente no filme, mas de maneira brevemente diluída, não à toa temos poucas imagens do fim da carreira do cantor, que é compensado pela quantidade de informação.
O acesso aos bastidores dos dramáticos eventos envolvendo a vida de Kuti são organizados através das falas de quem participou de cada momento, inclusive de algumas esposas. E estes entrevistados fazem concessões graves quanto à imagem que criou-se de Fela, revelando questões menos agradáveis do artista, que Joel mantém em seu longa como o único material reflexivo da pessoa e da carreira. Sem dúvida é uma escolha segura feita por ele, já que isso permite criar uma coerência e uma linha de estrutura que mantém-se fiel a partir de sua consolidação. Logo, ele se solidifica enquanto projeto cinematográfico, enrijecendo os argumentos estéticos propostos aqui, e consequentemente essa concretude no discurso faz o filme atravessar a História sem manchar sua intencionalidade. Essa relação direta entre a historicidade e a forma é o que dita o ritmo dos acontecimentos em tela, não por acaso, todos os ganchos são realizados com falas contemporâneas de pessoas que conviveram com ele.
É dúbio escrever sobre “Meu amigo Fela”, pois a segurança invés da ousadia, é algo que empobrece o filme, indiscutivelmente. Ao mesmo tempo, consegue garantir que o documentário não irá ser injusto com o realizador, com o músico, com os entrevistados e com Carlos, então compreende-se esta escolha como um gesto de sinceridade diante de tudo aquilo, o que é encantador, ao mesmo tempo vemos um gigante fazer um longa sobre outro gigante, que é empolgante de se assistir, impossível não ser. Então, enquanto escrevo fico repensando minha avaliação, pois acredito sem medo algum no projeto (e fiquei extasiado durante a projeção), mas fico frustrado por ver caminhos que são iniciados, ainda que paralelamente, e não possuem continuidade. E quando me abro pessoalmente no fim do texto é para deixar claro meu carinho por tudo isso aqui. Obrigado Joel Zito.