A Memória Que Me Contam
O fundo do mar para uma libertação
Por Fabricio Duque
A diretora Lucia Murat sofreu na própria pele os efeitos da ditadura militar. Foi presa e torturada, e dessa experiência, a cineasta sobrevivente construiu sua filmografia (“O Pequeno Exército Louco”, “Que Bom Te Ver Viva”, “Doces Poderes”, “Brava Gente Brasileira”, “Olhar Estrangeiro” “Uma Longa Viagem”). O seu mais recente longa-metragem, “A Memória Que Me Contam”, não poderia ser diferente. A trama representa um relato lúdico, realista, verdadeiro e sincero das consequências da guerrilha da revolução de 1968, expondo o lado “advogado do diabo” (“A questão é que não fomos só vítimas. Nós reagimos, matamos e também erramos!”, diz-se) ao analisar friamente o que aconteceu, trabalhando vítimas de “dois pesos e duas medidas”, a culpa e a necessidade de se estar dentro de um mesmo “mar”. A construção narrativa desencadeia o desenvolvimento peremptório do espectador, quando cria a intimidade interativa, o imergindo nas questões políticas, ora revolucionárias, ora utópicas e ou ora apenas existencial como deve ser. Por meio do referencial dos filmes “As Invasões Bárbaras”, de Denys Arcand, “Até a Eternidade”, de Guillaume Canet, e de obras do cineasta italiano Nanni Moretti, a direção é dada: conduzir quem assiste a uma atmosfera do que “ficou” e ou permaneceu após o movimento do “ano que não terminou” (livro de Zuenir Ventura).
Em “A Memória Que Me Contam”, o roteiro apresenta uma colcha de retalhos de instantes (em elipses temporais), que se enfrentam (e afrontam) entre o tema polêmico (de permitir a confissão do “erro” dos perseguidos políticos) e o cotidiano banal da vida (a iminência do esquecimento de uma época pela falta de registro e memória – esta “lembrada” na dor dos choques elétricos e outras práticas de tortura, comportando-se de forma subjetiva e emocional). Podemos dizer também que é um filme de atores, já que estes personagens reais (personificados) “seguram” a responsabilidade “imposta” pela direção competente, sutil, descomplicada, delicada, simples sem ser simplista, afiada, amarga, direta, incisiva, revolucionária e libertária de Lucia. A atriz Irene Ravache, vinte anos depois, interpreta uma cineasta (“alter-ego” metalinguístico da ficção) e retoma a parceria com a diretora, com quem trabalhou no primeiro filme “Que Bom te Ver Viver Viva” de 1989. Simone Spoladore representa o questionamento ético, terapêutico e libertador dos personagens, a memória “agrura”, a naturalidade pura da “felicidade” e o asilo em Paris (por meio da personificação mental – como um “fantasma” nostálgico de carne e osso que não mede palavras e sentimentos) ao interpretar Ana, baseada em Vera Sílvia Magalhães, ex-guerrilheira e uma das responsáveis pelo sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick no Rio de Janeiro, em 1969. Considerada um mito pela esquerda brasileira, Vera faleceu em dezembro de 2007.
Mas é o Miguel Thiré que vive a polêmica mais hipócrita. Para a mídia, por interpretar o gay Eduardo e para a própria ficção, por “chocar” a mãe que buscava a “igualdade” nas manifestações, paradoxalmente, ela guarda o desejo que seu filho fosse heterossexual e alimenta a esperança que ele se apaixone pela franco-brasileira Chloé, interpretada pela atriz e cineasta francesa Naruna Kaplan. A fragmentação das camadas narrativas conduz uma opção quase obrigatória, sendo conectado pelos discursos idiossincráticos e de “convicções políticas”. A estrutura firme, ao longo do roteiro, transforma a impressão inicial de telenovela teatral a um poético e sensível – sem o clichê característico desse tipo de gênero – “desabafo” sobre um assunto que ainda é tabu em nosso meio social, despertando a emoção sinestésica não forçada. É um drama sobre utopias derrotadas, terrorismo, comportamento sexual e a construção de um mito. E estreia no “auge” com a Carta depoimento da diretora Lucia Murat à Comissão da Verdade, relatando com detalhes e pormenores o terror dos acontecimentos “obrigados”, recebendo o título de Chevalier des Arts et Lettres do governo francês pelo conjunto de sua obra.
“A Memória que me contam” é o único filme sul-americano participando da competição internacional do Festival Internacional de Moscou. Conta ainda no elenco principal com Otávio Augusto, Franco Nero e Zecarlos Machado. Originalmente, o título do longa-metragem seria “Sala de Espera”. Os espectadores entendem quando o diretor de fotografia Bill Nieto diz “Durante as filmagens, a locação, que se mostrou mais complexa e desafiadora, era a sala de espera. Como transformar este lugar frio e monótono em um lugar quente com nuances?”. Concluindo, um filme obrigatório, sensível, necessário e extremamente pertinente aos manifestos atuais.