A picardia das cores
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2018
Exibido na mostra competitiva do Festival de Cannes 2018, o novo filme do diretor Spike Lee, “Infiltrado na Klan”, corrobora sua autoralidade e seu típico humor espirituoso mitigado de sensibilidades sobre as preconceituosas, ofensivas e violentas questões que atingem os negros todos os dias. Desde que o mundo é mundo.
O roteiro é uma potencializada auto-picardia (“baseado em alguma caricatura da vida real”), estimulando o sarcasmo como fio condutor de toda a trama, como por exemplo, na cena que um afro descendente transmuta-se de homem branco infiltrado para investigar assassinatos raciais.
Em 1978, Ron Stallworth (John David Washington), um policial negro (“que se acha branco”) do Colorado, conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan local. Ele se comunicava com os outros membros do grupo através de telefonemas e cartas, quando precisava estar fisicamente presente enviava um outro policial branco no seu lugar. Depois de meses de investigação, Ron se tornou o líder da seita, sendo responsável por sabotar uma série de linchamentos e outros crimes de ódio orquestrados pelos racistas.
“Infiltrado na Klan” conduz o espectador por uma estética Blaxploitation (movimento cinematográfico dos anos setenta que criticava a exploração dos negros), tanto que seu título original “BlacKkKlansman” é também uma alfineta, como um homem negro dentro da estética fílmica da Ku Klux Klan. Pois é, nossa tradução optou mais por um que de comercial do que autoral.
Uma das características marcantes do cinema de Spike Lee é seu questionamento em relação ao conteúdo branco contra negros dos filmes hollywoodianos, tanto que uma das primeiras cenas, um preâmbulo-ambientação, seleciona trechos de “E o Vento Levou…” (1939), dirigido por Victor Fleming, produzido por David O. Selznick e baseado no livro homônimo de Margaret Mitchell, que arrebatou dez estatuetas do Oscar e que no luta ideológica “Black Power” dos negros representa um dos filmes mais racistas da História do cinema. Sem esquecer de “A Última Sessão de Cinema”, de Peter Bogdanovich, entre “Oh Happy Day” das músicas Gospel e no “improviso das jam sessions de jazz”.
Outros discursos de ódio são inseridos, como “brancos não perto dos negros”, estar “sob ataques” e a supremacia da raça branca de “só seres humanos aqui”. “BlacKkKlansman” é para “provocar”. É o famoso “Shade Pose”, a defesa-atitude “veneno” que os americanos gays criaram para sobreviver no meio da sociedade hostil.
O longa-metragem é uma irônica crônica. E seu sarcasmo, elemento comprovado de inteligência, chega muito mais rápido que o enérgico discurso politizado. Seu diretor humaniza sua própria luta, e assim cria uma maior intimidade, estreitando a utopia da realidade. É palpável, orgânico e culturalmente transgressor e revolucionário, à moda de um Jean-Luc Godard.
“Infiltrado na Klan” usa o estereótipo para produzir críticas. Como o ensinar ao branco como um negro fala. E como um negro deve se comportar ao ser “transmutado” (por voz) em branco. É “dançar conforme a música”. Utilizar-se do método Stanislavski, de se tornar o próprio ser personagem. “Quem não ama Bowie?”, concorda. Versus os “heróis negros” como O.J. Simpson. Versus “judeus”.
É ser “invisível por um motivo”, “acordar da ingenuidade”, dentro da “Organização”. Nós somos abduzidos em um deboche generalizado. Por todos os lados. Sendo possível gargalhar com o politicamente incorreto. Só que sabemos exatamente o real objetivo da piada. E compactuamos plenamente com sua revolta à moda de “Bastardos Inglórios”, de Quentin Tarantino. Bem mais “fofo”. De transformar o agressor e o opressor em um completo idiota. É a revolução dos “africanos macacos” contra seus “colonizadores”. Contra “O Nascimento de Uma Nação” (1915), de D. W. Griffith, com suas “black faces”.
“Infiltrado na Klan” é um pulsante e latente discurso contra o racismo intimidado. Principalmente pela arte cinematográfica. Por depoimentos dramáticos de vítimas com uma não saudosista luz nostálgica da fotografia que cria um lugar não grato, e sim de homenagem a Angela Davis e Martin Luther King. É um filme que inflama, que não quer em hipótese alguma suavizar com água. É sobre lembrar das marcas para salvar e proteger o presente e seu futuro.