O presente é mulher, o futuro é mulher
Por Francisco Carbone
Durante a Mostra de Cinema de Tiradentes 2018
“Imo” integra a seleção competitiva da Mostra de Cinema de Tiradentes 2018. Três mulheres em três situações-chave distintas. A primeira costura a frente de uma janela ensolarada. A segunda descasca uma batata de costas para uma janela nublada. A terceira coça os pés no quintal ao ar livre. Meticulosamente essas ações são mostradas com afinco, com a destreza e a atenção dispensadas de suas realizadoras. Em breve as três estarão em situações particulares realizando outras ações, mais complexas, arriscadas, metaforizadas, amplas nas questões de gênero que a estreia da diretora Bruna Schelb Corrêa quer abraçar. Sua intenção não é classificável de cara, mas tal qual as ações filmadas nos primeiros 10 minutos desse “longa curto” (enxutos 65 minutos), Bruna não tem pressa para descortinar suas intenções, embora no próprio discurso ela já tenha falado. Nessa sua economia de duração, Bruna consegue a concisão temporal e respira tranquila nesse sentido. O que não impede seu debut cinematográfico de parecer errático logo, com o lugar de onde escolheu observar suas questões.
Esse recorte cotidiano inicial encontra reflexo na proposta temática da Mostra desse ano, ‘Chamado Realista’, mas o mesmo se encerra aí. Ainda que a definição de realismo seja subjetivada de acordo com o olhar de cada um, Bruna trabalha em outro registro logo se encerre esse prólogo. A partir de então uma chave que misture o onírico e o delírio, a metáfora e a discussão imagética toma conta do todo e seu longa sai de um lugar de onde poderíamos encontrar ecos de Chantal Akerman para um ponto de reflexo com Maya Deren, algo entre a inspiração e a reverberação temática e estética. Num campo repleto de lugares de fala preciosos, as ambições de Bruna são acertadas e corajosas, mesmo que seu filme pareça livre demais na escolha do seu próprio lugar, abrindo o escopo para interpretações múltiplas que ela não parece ter interesse em frear, no que deve ser uma excelente decisão. A jovem diretora expurga uns demônios sociais impostos ao seu gênero e sutilmente entrega um belo retrato do dia a dia, dentro desse lugar de sonho/pesadelo, ainda que palpável.
Dividido em três etapas seguintes, o filme resolve pregar o seu título e passa a sublinhar uma metodologia diária de situações femininas através desse olhar por lugares de risco calculado em um mergulho no vazio; é o íntimo, é o interno e o não partilhado. Esses recortes de três personagens femininas que encontram seus obstáculos a transpor tem muito da observação cotidiana pela lente do surrealismo, criando uma linguagem e um universo particular, pertencentes não apenas ao longa, mas também especificamente aquela casa, aquele cenário. No primeiro bloco, uma mulher atende um telefone enquanto corta maçãs; no segundo bloco, uma jovem arranca os próprios olhos, para em seguida planta-los; no terceiro, outra jovem nua presa em um quarto se vê em seguida servida num banquete. Nos três quadros, existem situações-limite que precisam ser solucionadas pelas personagens, que cada uma a sua maneira seguem em frente tendo os resolvido, ainda que as soluções não sejam sempre as esperadas. Elas acabam mostrando que tais soluções são muito mais orgânicas na vida real e dependem muito.
Essas representações femininas e as situações vividas nos três quadros são configuradas em contexto bastante subjetivo. Ainda que num plano paralelo a realidade, o filme faz questão de deixar claro desde o início que não se passa de um reflexo da mesma, como uma questão micro observada num viés macro, e deformada pelo sonho. O trabalho de som evidencia a cadência do lugar onde se quer chegar, corroborando o trabalho da direção e dos planos com o intuito de provocar incômodo, talvez o mesmo incômodo pelo qual cada uma das personagens represente enquanto painel de situações da sociedade. Ao menos uma das atrizes se encontra em situações complicadas do ponto de vista da entrega corporal (notadamente Giovanna Tintori), mas o filme camufla seu aparente desconforto com uma carga forte de representação clara, a mais clara do longa. Na verdade é esse segmento que acaba evidenciando um dos problemas do filme, uma espécie de paternalização do público, pego pela mão e levado pela diretora a fim de não interpretar mais. Ela enfim expõe seu lado explicitamente, e o filme perde algo da força que ainda tinha.
Mas a estreia na direção em longas de Bruna é calcada também na sua coragem de subverter padrões de olhar lançados sobre o feminino, sem qualquer ranço de vitimização ou impedimento da sua força. Seu trabalho estético tem bela construção, em parceria com Luis Bocchino na fotografia e na montagem, dando a sua construção naturalista de sons e luzes uma opção perfeita para um contraste da proposta artística, que tange sua narrativa no barroco e em arroubos estilísticos, mas que encontra um feixe de felicidade no seu tratamento sutil de imagens. Bruna é obviamente um diamante bruto a surgir em Tiradentes, alguém que não precisará de muito tempo ou esforço para ser lapidado, e que essa estreia já define como promissora e ousada. Ainda que não acredite potencialmente no espectador, sua autoconfiança há de surgir com a experiência adquirida nos próximos trabalhos e sua pegada explícita do choque irá ser bem-vinda em projetos futuros; já no aguardo.