O Futuro Perfeito
A língua hipotética do final feliz
Por Fabricio Duque
A arte do cinema é, acima de tudo, sobre contar histórias, todas essencialmente observacionais, únicas e interessantes. “O Futuro Perfeito”, estreia na direção de um longa-metragem da alemã Nele Wohlatz, eleva esta característica ao metaforizar o querer e o poder ser com o tempo verbal que expressa uma ação que começará no futuro e que será concluída em uma determinada parte do futuro. Só que aqui, o presente momento é o período imediatista, sonhador, urgente e fugaz que projeta o imaginário futurista aos sonhos, desejos, liberdades, felicidades e ou fracassos defensivos, ora com modificação, ora com terapia, ora com adaptação, ora com resiliência, ora com resignação, mas tudo sem covardia, apenas limitações típicas, a fim de se construir a trama perfeita da própria vida.
Não há como negar uma quase explícita semelhança, que se percebe mais como homenagem, à estética narrativa do cineasta Hong Sang-soo que desenvolve suas histórias pela leve e ritmada presença do tempo e do acaso, e por “consertar” ações e reviravoltas de seus personagens, que são marionetes-papéis de um roteirista que muda humores ao “sabor do vento” ou de uma cerveja ou de um café. Inicialmente, a câmera estática, retrata uma jovem, em uma entrevista, que mais parece a de funcionários de um aeroporto julgando suas necessidades de ficar no país deles. Nós somos ambientados em detalhes-informações. De encontrar a família pela primeira vez. As primeiras atividades quando chegou no país: dormir, comer, estudar. O aprender espanhol no “supermercado do tio”. E principalmente as dificuldades da língua e da comida (“típica da Argentina é o churrasco”), que limita, desestrutura, causa intolerância nos outros e quase faz desistir.
O cinema tem outra característica. Despertar a sinestesia de nossas memórias. Na cena em que, ainda, Xiaobin, entra em um restaurante, e seu medo a desespera por não entender, ainda, nada da língua, e por encontrar a intolerância do outro em não a ensinar, realmente aconteceu comigo. Quando viajei a New York pela primeira vez para estudar, em meu primeiro dia acabado de chegar, excitado e agitado, deixei as malas no hotel e fui almoçar na Times Square. Lembre-se: primeira vez e com um vulnerável nervosismo sobre-humano em desligar o português e ativar o inglês, um completo alienígena em terra estranha. Então, entrei no restaurante, solicitei o cardápio, tremi, travei, pedi desculpas e saí correndo para apontar o dedo nos ingredientes de um Subway subterrâneo e vazio próximo dali. Não havia ninguém na loja. Final das contas: almocei e ainda fiz meu primeiro amigo. O funcionário, ultra perspicaz, entendendo meu drama, disse que já tinha ido ao Brasil e assim tudo começou a fluir.
Tudo é novo. Xiaobin está perdida e com vergonha. E assim, o único sanduíche (de “presunto e queijo”) que consegue torna-se seu amuleto repetitivo. Sua primeira vitória. Ela vai galgando as dificuldades. Entra no curso de espanhol (com atividades práticas da aula) após ser despedida do trabalho. Neste ponto, o encenado tom anti-naturalista utilizado causa estranheza, mas seu uso é proposital e entendido com maestria no final. Beatriz, já rebatizada com “nome espanhol”, encontra um indiano que quer “seu Facebook”. Ela esconde dinheiro como proteção. Sua mãe “arruma contato de namorados”. “Casamento é para toda vida”, diz. “O Futuro Perfeito” retrata o cotidiano com sensibilidade, sutileza, liberdade, e sentimento sem ser sentimental, por um tempo quase pausado em silêncios imersos do mundo da protagonista e em aprendizados técnicos de conversas de um curso de línguas em que a realidade é conduzida.
O filme também discute a raiz nacionalista de um povo (que naturalmente “não gosta de estrangeiros”), que mesmo mudando-se a outro país, por necessidade, impede-se, com engessamento, de aprender a nova língua para não esquecer da terra natal. Beatriz, em uma cena, para “lavar roupa” com o namorado, briga em mandarim. Ninguém entende. Não é traduzido. Outros atores-personagens estrangeiros são inseridos em outras línguas, com o intuito de ressaltar a “tecla que está sendo digitada”, como Nahuel Perez Biscayart (de “120 Batidas por Minuto”), que “finge que fala chinês” e “ensina como um ator faz para chorar” entre a “fronteira com o Uruguay”, com o mesmo “presunto e queijo no pão” e a chuva que cria a poesia do conceito.
“O Futuro Perfeito”, em associação com Gustavo Beck, é um filme “se”, que representa o hipotético, a digressão futurista, a imaginação emocional personificada de outras realidades, a reconstituição cerebral, o teatro terapia. Trabalha-se com o que se consegue. É sobreviver para manter o sonho e o lugar objetivado de morar e para despertar a confiança, com posse de “personagens-presentes” que ajudarão nossa protagonista a não mais “Não imaginar um final feliz”, não mais vitimado e sem perspectivas, não mais uma mendiga sem oportunidades em uma terra opressora quase existencialmente apocalíptica, mas sim “com uma câmera pessoal turística, trêmula e sem foco”. Ah, e com a “armadilha para pegar o gato”. É um filme único. Uma obra-prima. Um pequeno (por ser curto na duração – apenas 65 minutos – um pouquinho mais de uma hora) grande filme (em seu resultado). Premiado no Festival de Cinema de Locarno 2016 em várias categorias, incluindo Melhor Primeiro Filme. Mais que recomendado.