Espera

O tempo em sua forma

Por Vitor Velloso


Algumas obras nos impactam de tamanha maneira que escrever sobre elas é uma tarefa quase impossível. Isso porque elas representam algo tão íntimo, que ao discorrer sobre essa experiência, o crítico expõe suas entranhas a um nível absurdamente desconfortável. Mas ainda assim “Espera” o novo filme do Cao Guimarães, precisa ser visto e debatido.

Muitos dias antes de ir à sessão, havia feito uma mini maratona do Cao, revi diversos filmes anteriores e tive a oportunidade de ver o interessantíssimo “O homem na Multidões”. Sabia da potência imagética que o diretor possuía, aliás, seu livro de fotos lançado pela Cosac a um tempo atrás já me dizia isso. Ao entrar no Cine Humberto Mauro, durante a Mostra CineBH, me deparei com um imenso público, algo não tão comum durante o festival, fiquei contente pela recepção mais que calorosa que Cao recebeu. Ele disse pouco, mas o suficiente, que a vida é feita de esperas e o longa retrata alguma dessas esperas.

Os primeiros planos do filme denunciam uma cadência bastante firme quanto ao seu ritmo, mas já dá pistas do que virá a seguir. Vemos “Gael”, contando quase como um confessionário à câmera toda sua experiência com a testosterona, buscando equalizar mente e corpo. Enxergamos e sentimos suas ansiedades e angústias diante das lentas transformações. Ao mesmo tempo acompanhamos a trajetória de Cao para revelar a descobrir fitas que estavam na sua geladeira a anos. E também, de uma outra personagem que possui dificuldade para dormir.

O filme é muito mais do que se desenha. É o cinema à serviço de si, da sua própria materialidade, do seu próprio tempo. Imagens que de um tempo morto esgarçado pelo cineasta a ponto de sentirmos o impacto do corte seguinte. O espectador quando entra na sala de cinema, faz um pacto com o diretor, um pacto de cooperação para a construção do sentido da obra, e aqui, Cao, não apenas sela este pacto, como nos convida a realizar o mesmo com seus personagens e seus tempos. As frustrações que vêm à tona no rosto de cada um por “sentir-se incompleto”, citação à Guimarães Rosa, feita pelo próprio diretor.

Para quem me acompanha, sabe que não gosto de ser categórico em qualquer expressão que faço, seja ela positiva ou negativa. Porém, irei abrir uma exceção aqui. É necessário dizer que Gael protagoniza uma das cenas mais lindas da história do cinema brasileiro. A potência que possui um plano específico, com luz vermelha, é inacreditável. É uma força política, de reação, de cessar a espera que o cinema inteiro congelou diante da tela, pequenos aplausos eclodiram durante a sessão, porque é simplesmente…. mágico. Cao praticamente encerra o filme com este plano, e eu saindo da sala olhei para um colega de profissão e só pude soltar um palavrão. Eu não conseguia formular nenhuma palavra concreta sobre a experiência de “Espera”. E tudo isso deve, claro, à construção que o cineasta faz de pequenos momentos, para que possamos apreciar os últimos cinco minutos, a bomba final. Se alguma crítica poderia ser feita a ele, por uma certa passividade diante do tempo da própria obra, sua resposta, absolutamente anacrônica, arrebenta qualquer expectativa criada previamente.

Existe um certo olhar ideológico sobre a teoria do cinema como um todo, através da manipulação do tempo. Os dispositivos que são utilizados aqui, remetem ao que há de mais primordial na natureza cinematográfica e, consequentemente, um debate sobre como as pessoas se portam diante desses meios. Imagino que parte destas criações foram vislumbradas no processo de montagem, o que deixa a proposta ainda mais interessante, pois, a organicidade do fluxo que compõe as imagens é a grande chave do filme. A priori seria fácil perder o espectador com um projeto dedicado aos “tempos mortos”, porém, além da dimensão política que se tem quanto a passividade da espera, há essa maleabilidade das profundidades de pensamento que são apresentadas.

O tempo, enquanto condição de percepção do ser humano, não trata-se apenas de uma medida, mas de um meio, e “Espera” absorve para si conceitos que vão além da definição prosaica do tempo. Cao concebe o tempo como parte da condição humana da espera, desse sentimento, de estar incompleto e que se há a ausência desse estado, há o fim do sentido da vida.

Um dos melhores filmes do ano, sem dúvida.


 

5 Nota do Crítico 5 1

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