A imanência do afeto
Por Gabriel Silveira
Dando continuidade ao discurso do cinejornal Prepara! (Dir. Muriel Alves) que relata a batalha de vestibulandos transexuais e sua força de resistência para com todas as adversidades dessa jornada, o cineclube Estação Queer estreou o longa, inédito no Brasil, Entre-Laços(dir. Naoko Ogigami), obra que se consolida como uma singela e kawaii carta de resistência à comunidade LGBT que gera grande parte de sua força de potência a partir de sua característica vulnerabilidade.
No drama, a menina Tomo (Rin Kakihara) é abandonada por sua mãe Hiromi (Mimura) e parte em busca de um refúgio no lar de seu tio Makio (Kenta Kiritani), a surpresa de Tomo dessa vez — como já havia buscado auxílio de seu tio em outras instâncias quais sua mãe havia fugido de casa — foi que, Makio agora é comprometido e divide seu apartamento com sua namorada Rinko (Tôma Inkuta), a enfermeira transexual que roubou-lhe o coração na primeira troca de olhares que compatilharam no asilo em que Rinko trabalha auxiliando a mãe de Makio e Hiromi.
Num primeiro momento as escolhas de Ogigami podem parecer distantes e frias ao apresentar o embasamento de Tomo no primeiro ato. A decupagem neste momento acaba apontando um senso de espaço constrangido e um espectro frigido em toda a solidão de Tomo no apartamento abastecido por bolinhos de arroz de mercado e jogado ao relento de sua mãe. O ambiente escolar é apresentado em um jogo de quadro simplório, que aponta o distanciamento da menina para com seus colegas de classe que pregam um bullying homofóbico ao colega e vizinho do apartamento de sua mãe que só deixa bem claro as intenções de Ogigami de levar a relação de exposição dos antagonistas sociais num distanciamento que anseia não potencializar a humanização de seu drama na peste, mas, no âmago da empatia de seus protagonistas.
E essa dança humanista começa no encontro do mundo de descobertas de Tomo com a voz da experiência de Rinko. O estranhamento que os olhos receosos conjurados por Tomo ao corpo de Rinko funciona apenas como um combustível empático para que esta despeje sobre a menina todo um anseio de carinho e proteção que aquela não recebia devidamente no lar original. E é nessa conjuração do afeto pelo filme que o distanciamento frígido passa a ceder o lugar, gradativamente, a uma política de afetos dos corpos daquelas personagens. Quando as duas se juntam para preparar as camas da primeira noite de Tomo na casa, a menina decide espiar sobre o decote de Rinko com sua curiosidade infantil para então a enfermeira seguir perguntando “Quer tocá-los? são reais.” com todo um imenso sorriso no rosto que, se não fosse pelo domínio do senso de singeleza que Ogigami consegue fazer permear pela integridade da mise-en-scene da sequência, se fosse qualquer outro diretor em qualquer outro contexto, sem metade da sensibilidade de Ogiami, poderia acabar-se desguando na mais catastróficas das ambiguidades.
A medida em que Rinko passa a conquistar a confiança de Tomo, dá-se início a uma fina abertura do corpo desta confiança que ameaça ceder aos ocasionais ataques de personagens à condição do denso laço que estabelece-se entre as duas. Isso não somente na macro-estrutura estabelecida em torno das personagens que compartilham do cotidiano
com as protagonistas — como a mãe do amigo de classe de Tomo que se encontra nos primeiros conflitos existenciais por conta do descobrimento de sua homosexualidade sob os controles da homofobia da mesma mãe, que acaba pintada como uma personagem unidimensional na trama cuja sua única vontade manifesta é atrapalhar a vida dentro do novo lar de Tomo — mas, também, nos próprios tropeços da auto-estima de Rinko nas imensas feridas de seu passado que são abertas novamente e postas em cheque toda vez que bate de frente com a questão ainda não resolvida de seu período de transição, porque, mesmo com o ciclo fisiológico encerrado, para Rinko, a concretização da realização de sua verdadeira identidade só chegará à um ponto final quando alcançá-la numa dimensão espiritual, a qual o filme incorpora numa sequência alegórica que é síntese-mãe do espírito da obra.
Ogigami não encerra a obra sem falhas, há certas sequências que simplesmente me entristeciam pela mão errada e uma desconexão da diretora para com o filme que parecia não ter propósito algum. Mas, no fim, não há como fazer o menor esforço para tentar mentalizar tais vacilos, porque, a sinceridade no amor que é emanado pela tela do filme é mais importante e vital, nessa era de ressurgência das trevas, do que qualquer ressalva estética.