Utilidade Pública
Por Gabriel Silveira
Com uma primeira leitura de Glauber Labirinto do Brasil destaca-se, já, um anseio de Silvio Tendler pela exposição absoluta de seu objeto. Uma vontade que acaba funcionando como um dispositivo que loca o tal objeto de estudo nu em cima de um pedestal atacado por todos os holofotes e ângulos possíveis do discurso indireto de suas personagens entrevistadas. Em Glauber Labirinto do Brasil tal exposição pode tocar dentro do tom em certos momentos e, em outros, pode se fazer de uma surdez absoluta. Mas, tratando-se da persona de Glauber, isto torna-se outra questão questão para uma outra ocasião, porque, independentemente de certas moralidades, Tendler expõe a jornada de Rocha com a singelidade de um filme de família caseiro. Singelidade que aponto como crueza que parte para uma lição funcional, e quando Silvio resolve fazer de tal estilo uma ferramenta de compreensão lúcida do status-quo pré-distópico do panorama político/econômico mundial contando com escopos de entrevistados internacionais enquanto mantém o pé de seu discurso em território nacional, a projeção se torna, então, uma aula vital.
Tendler resolve fazer da exposição de seu discurso o carro-chave da didática que é alicerce do projeto. Como esqueleto estrutural do filme o diretor começa com aquilo que melhor sabe fazer, o casting de time dos sonhos de um elenco de personagens a serem entrevistadas capazes de desconstruir a temática chave além de sua própria planta. Como em Glauber Labirinto do Brasil o realizador utilizou daqueles que compartilharam de um intenso cotidiano com o artista para pintar aquele retrato de revelação estourada, em Dedo na Ferida são convocadas personalidades como Paulo Nogueira Batista Jr. (Vice-Presidente do Novo Banco de Desenvolvimento – BRICS), Oscar Oliveira (Sindicalista da Liderança Contra a Privatização da Água – Bolívia), Maria José Fariñas Dulce (Professora de Filosofia do Direito da Universidade Carlos III – Espanha), João Pedro Stedile (Líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), Yanis Varoufakis (Ex-Ministro das Finanças da Grécia), Gianni Tognoni (Secretário Geral do Tribunal Permanente dos Povos – Itália), David Harvey (Professor de Antropologia e Geografia na NYU – EUA), Celso Amorim (Ex-Ministro das Relações Exteriores), Raquel Rolnik (Professora de Arquitetura e Urbanismo na USP), Boaventura de Sousa Santos (Professor da Universidade de Coimbra – Portugal), Laudislau Dowbor (Professor Titular de Economia da PUC-SP), o cineasta Costa-Gravas e mais um contingente de mão de obra intelectual qualificada que desenha, nesta imensa aula, o superficial e o intrínseco da jornada da tomada de poder das mãos do Estado pelas entidades/minorias totalitárias financeiras que visam um expurgo absoluto da democracia na economia líquida global, que mais sonham com o ensejo de uma re-encenação pós-moderna da crise de 1930 a propósito de faturarem alto com suas apostas dentro de seu cassino de especulações absolutas que fazem de vidas humanas baratas fichas de troca.
E quando afirmo que desenha-se, é porque, Tendler literalmente desenha em seus planos de cartelas gráficas digitais — com uma estética que remete a traços de desenhos de caderno um estudante do ensino médio — linhas de raciocínios e teorias reveladoras que até mesmo uma criança de nove anos de idade seria capaz de compreender. Em qualquer outro projeto tudo isso poderia soar extremamente barato e vulgar por conta de certos excessos acompanhados das cartelas de nomes e credenciais que ilustram cada primeiro plano de cada entrevistado, criando um espírito de um didatismo ambíguo, que age ora como um discurso de professor que protege seu aluno (o povo), ora como se ostentasse todo um escárnio de quem “desenha” para o corpo humano da insurgência reacionária protofascista internacional.
E toda essa argumentação, como comentei acima, é embasada no povo. O foco do discurso não é somente cristalino, objetivo e preciso porque procura servir como ferramenta funcional de educação pública, mas também, porque viabiliza uma aproximação estética e formal para com tal audiência visada quando faz uso de apropriações de um material que é oriundo do próprio povo (imagens de arquivo de todo tipo de insurgência revolucionária) e a escolha de filmar todas as personagens que não foram entrevistadas em estúdio com uma aparente câmera de celular. Dedo na Ferida, por fim, afirma-se como uma obra verdadeiramente popular. Uma ferramenta didática numa política de conscientização de massas que mais deve ser distribuída como um produto de utilidade pública.