A Luta do século
Por Fabricio Duque
Em 1976, o filme “Rocky – Um Lutador” tornaria, Sylvestre Stallone um dos atores mais conhecidos e reconhecidos do cinema norte-americano. As continuações da saga Balboa tornaram-se histórias de superação sobre boxe, esporte este tão violento e brutalmente primitivo. Disciplina, humildade, conhecimento da técnica (e de seu oponente), controle emocional, raiva projetada. Tudo para traduzir o transpassar dos limites do próprio corpo e da mente, em uma transmutação quase máquina, que para vencer precisa mitigar influências sentimentais. Firmou-se também como gênero de filme de ator, que nas palavras do cineasta soviético Sergei Eisenstein, em “O Sentido do Filme”, define por “autenticidade da esfera da técnica interior do ator”. “É o estado, a sensação, a experiência sentida, em consequência direta em grau máximo de expressividade”. Sim, um ator deve naturalizar seu personagem a ponto dissociá-lo da própria construção.
Há quarenta e dois anos, inevitavelmente, a indústria cinematográfica é obrigada a “refazer” clássicos a públicos modernos. A necessidade da vez é uma nova franquia: “Creed”, que traz o protagonista filho de Apollo Creed, que foi oponente de Rocky. Desta vez, nós espectadores temos a plena certeza que o mundo mudou de verdade. Interpretações tornaram-se meros espetáculos à audiência. Mais sensíveis, mais palatáveis e menos sutis. Eisenstein também pode nos ajudar quando explica que “sem esforço para representar o próprio sentimento, é possível suscitá-lo pela reunião e justaposição de detalhes e situações deliberadamente selecionadas entre todas as que primeiro se acumularam na imaginação, rumo à formação e intensificação da emoção”.
Na continuação, “Creed II”, dirigido por Steven Caple Jr. (de “The Land”) estimula um confronto nostálgico de um reencontro de “um milhão de anos”. Ao criar a luta do século. Um acerto de contas com o passado do protagonista, interpretado por Michael B. Jordan e o filho de Ivan Drago (o ator Dolph Lundgren), pai que foi derrotado por Rocky Balboa (e “perdeu respeito, país e mulher”). É um embate “Shakespeare” entre filhos para proteger a honra e o cinturão-prêmio. Adonis Creed absorve o medo da opinião pública. É influenciado, facilmente manipulado, mimado, arrogante, defensivo e agressivo. “Nosso homem, ao se ver nessa posição, imaginará em primeiro lugar todas as terríveis consequências de se ato nesses termos, em que essas consequências imaginadas e suas combinações o reduzirão a um tal grau de desespero, que ele procurará uma saída inesperada”, explica Eisenstein. Revela-se o quadro febril. E nada nem ninguém o fará mudar de opinião (“é só publicidade”). “Provar para o público ou para si mesmo?”, pergunta-se, alternando atuações de efeitos com palatáveis e infantilizados alívios cômicos (do núcleo pessoal). Sim, é um filme novela com seus núcleos fragmentados, quase esquetes, que complementam o todo. Como clipes musicais de vidas em elipses. Com sua câmera subjetiva que transforma o público em lutador.
Adonis Creed (Michael B. Jordan) saiu mais forte do que nunca de sua luta contra ‘Pretty’ Ricky Conlan (Tony Bellew), e segue sua trajetória rumo ao campeonato mundial de boxe, contra toda a desconfiança que acompanha a sombra de seu pai e com o apoio de Rocky (Sylvester Stallone). Sua próxima luta não será tão simples, ele precisa enfrentar um adversário que possui uma forte ligação com o passado de sua família, o que torna tudo ainda mais complexo.
“Creed II” é um filme bruto. Diretamente violento entre dois mundos: Estados Unidos e Rússia. Um já famoso e confortável lutador (com mãos esquerda e direita – que chegou “ao topo do boxe”). O outro “Pit Boy” que “por não ter nada a perder, é perigoso”. “Desliga a mente e deixa o coração”, ensina-se. Outra fragilidade é que o filme quer abordar questões demais, tudo com um potencializado sentimentalismo e uma sensibilidade politicamente correta que chega a cansar o espectador. Há drama, romance açucarado, comédia. Será um “This is Us” do boxe? Há roteiros turísticos da Filadélfia com a estátua de Rocky e sua icônica escadaria. “Lutar é mais barato que psicólogo”. Uma luta de “máquinas mortíferas”. “Um bom show faz a luta existir”. Então, nós nos questionamos sobre o que é o respeito? Um mero conceito moral social? Há aqui um Rocky mais humanizado versus o preconceito de seu “filho”.
Entre gravidez, surdez, vingança, dúvidas, cenas de treinos, impulsos, “oponente monstro” (“osso duro de roer”), a imagem da honra, o filme encontra a mãe de Adonis, Mary Anne Creed (a atriz Phylicia Rashad, que deveria ter sido indicado tamanha naturalidade ao criar o tom espirituoso e perspicaz). O longa-metragem busca criticar a forma do entretenimento e torcer pelo conteúdo do esporte. Pois é, “cão que ladra, não morde”. “Creed II” tenta reiterar todas as características do cinema hollywoodiano. O clichê de um grito desesperado imerso na piscina. E ou o recomeço e “renascer”. E ou a redenção americana de recuperar o prestígio, sem dar chance a nacionalidade russa. E ou viver o inferno para aceitar a dor. E ou a música apoteótica que aumenta o efeito do momento. É quase como Erik Killmonger se tornar “Pantera Negra”. “Se quiser causar dor, tem que aceitar a dor”.
Sim, e quando todos os gatilhos comuns e todas as reviravoltas facilitadoras pareciam pulular, eis que toca o tema de “Rocky – Um Lutador”: “Gonna Fly Now”, de Bill Conti. Pois é. Tudo cai por terra e a emoção natural e espontânea nos atinge e nos arrepia de uma tal forma que nossos olhos se marejam. É um filme sobre defender o nome. Defender o legado. É sobre as lutas próprias nossas de cada dia.