Ode à projeção humana
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Cinema de Tiradentes 2019
Alguns filmes são particularmente difíceis de escrever sobre, seja por uma questão objetiva, por possuir questões formais complexas e dissecar elas é um exercício bastante difícil, ou mesmo por uma questão subjetiva, pessoal de fato, onde a obra tenha atingiu de certa maneira determinados pontos que escrever sobre a experiência é quase injusto.
“Calypso” dirigido por Rodrigo Lima e Lucas Parente, é as duas coisas. Não trata-se apenas de uma releitura simplória de parte da jornada de Odisseu, mas uma visão visceral dos eventos e das características psicológicas. Se inicia com uma proclamação literária à la cinema marginal, mas já com uma composição que raciona com precisão o lugar do ser humano em toda aquela misancene. Como Herzog, o homem x natureza, em uma luta incessante, onde só podemos ver os resultados dessa batalha de fundo, mas a sanidade é um fluxo de estado que não se mantém sem a devoção ao caos e aquilo que tange a realidade. Se a metafísica possui sem papel central nas discussões que o longa levanta, a estética, o estilo, desenha exatamente o universo que estamos observando, traçando com falhas onde devemos manter o pé no chão e onde deixamos nos levar. Toda essa experiência é ampliada pelo desenho sonoro completamente hipnotizante, que monta uma viagem tão concreta que funcionaria por si só, mas aliada da imagem torna-se devastadora.
A referência mais próxima ao Malick, é nítida de certa maneira, mas não para na superfície, todo o transe que vemos em “Calypso” possui características muito próprias, desta maneira, as múltiplas leituras possíveis, são bem-vindas.
“Abaixo a interpretação”. Não defendo explicações à obra, acredito que a única maneira de apreciar de fato, é deixar-se levar, permitir que o tempo molde o que ficou. A questão geográfica da narrativa não é ignorada, pelo contrário, certa brasilidade aflora do texto e das interpretações em diversos momentos, além do cenário no fundo denunciar a decadência do homem em meio à própria casa. E toda a sedução que há no texto original, se mantém. Mas com uma face mais complexa, já que para além das palavras, temos a câmera. E num jogo poético tão livre, e fadado à desgraça, quanto o pau-brasil que nos cercou um dia, a câmera acompanha todos os movimentos de seus personagens, compreendendo uma impossibilidade de reconciliação.
A beleza dessa visão sem volta das decisões que tanto o filme, quanto o protagonista tomam, é a veracidade de nossos atos, e como nossas escolhas possuem reações tão viscerais quanto a dúvida de as tê-la. Sem a necessidade de reassumir posições, os diretores estão completamente livres em manipular a realidade e o tempo do que vemos na projeção. Com uma postura de descentralizar o filme, tanto em narrativa, quanto em atenção ao trabalho dos dois, buscam permitir que o fluxo das imagens em movimento soe o mais orgânico possível. E se em algum momento interrompem com violência alguma dança imagética, é por compreender que o controle de todos os destinos são exteriores aos personagens, mas não a eles.
A ideia da primordialidade do Homem, se encontra naquilo que se diz palavra ou imagem. Existe uma rigidez que contém certa brutalidade no pensamento, mas liberta a ideia política pela maior parte do tempo. Um conceito central, que só existe ao Homem enquanto Homem e à arte enquanto arte. Esse tom substancial de pequenas atitudes e gestos, são reveladores quanto à natureza da coisa em si. O arquétipo da fotogenia sendo elevado ao tom da morte. E a projeção como elevação da alma e da expressão. Um ode a liberdade enquanto impulso criativo, esse processo de auto flagelação ao qual o autor se submete para expurgar seus próprios demônios. O destino do Homem não apenas em travar a eterna luta contra o próprio planeta, mas contra a ideia de cultura, de ilusão alienadora.
Rodrigo Lima e Lucas Parente compõe uma das obras mais intrigantes dos últimos anos. Uma experiência impecável com a tela grande.