Dedicado aos pescadores
Por Pedro Guedes
“Vocês arrastam isso todo dia sabe para quê? Para meter dinheiro na barriga de branco! Eles estão tudo ricos nas suas costas. A mim ninguém explora mais!”
Esta é uma das primeiras falas de Firmino em “Barravento”, o primeiro longa-metragem da seminal carreira de Glauber Rocha. Talvez as palavras soem prosaicas ou óbvias, mas a verdade é que o que o personagem diz, neste trecho, resume boa parte de seu arco dramático e das intenções gerais do filme. Glauber (sim, mantenho meu costume de chamá-lo pelo primeiro nome, como se fosse íntimo dele) não se contenta em apenas mostrar a realidade dos pescadores de xeréu que habitam no litoral da Bahia, aproveitando os 77 minutos de projeção para celebrar a cultura daquelas pessoas.
Escrito não só por Rocha, mas também por José Teles e Luiz Paulino dos Santos (este último, inclusive, havia sido contratado para dirigir o filme, mas uma série de discordâncias o levou a abandonar o cargo), “Barravento” começa com um letreiro que serve como uma rápida contextualização para o espectador, abreviando as raízes étnico-culturais dos personagens, dedicando a obra aos pescadores e explicando o que é o tal “barravento” (é o momento de violência onde os elementos da terra e do mar se transformam). A partir daí, somos apresentados à aldeia dos pescadores de xeréu e ao morador Firmino, que há muito foi para Salvador na esperança de arrumar um emprego e, agora, resolveu voltar à comunidade. Obviamente influenciado pelo estilo de vida urbano, Firmino vê sua (ex)amada Naína se interessar pelo pescador Aruã, que jamais parece ser atingido pela força dos mares e, por isso, é encarado como santo inabalável pelas pessoas que estão ao seu redor. Assim, Firmino decide desafiar Aruã para um combate e ainda faz questão de negar qualquer virtude que possa beneficiar seu rival, atrapalhando a pesca da aldeia inteira.
Se estabelecendo como um legítimo estudo etnográfico, “Barravento” não se limita a criar uma historinha comum e a atirar pequenos momentos que remetam à cultura dos pescadores – em vez disso, o filme transforma as heranças africanas dos personagens em algo que compõe e move a narrativa, tornando-as indispensáveis dentro do panorama geral da obra. Assim, as decisões tomadas pelos protagonistas são sempre baseadas em crenças e pensamentos antigos, ao passo que os costumes e tradições se manifestam constantemente através de diálogos, lutas de capoeira e longas sequências onde a câmera permanece acompanhando a dança de mulheres em meio a um ritual; algo que, claro, é acompanhado pelo ritmo dos tambores e dos cânticos que ajudam estas cenas a soarem ainda mais convincentes e poderosas. Mais do que pescadores de xeréu, aqueles personagens são verdadeiramente amados, protegidos e castigados por Yemanjá, a rainha das águas.
Aliás, o simples fato de manter a câmera apontada para um evento específico constitui um ato político – e o tempo que a câmera permanece em sua posição diz muito sobre a postura do cineasta diante daquela situação. Em “Barravento”, Glauber enfoca os detalhes que compõem a cultura daquela aldeia ao longo de minutos consideráveis, o que reflete sua maior intenção neste projeto: mostrar e apreciar as raízes daqueles personagens. Isto é ganha uma força ainda maior através da montagem, que, assinada por ninguém menos que Nelson Pereira dos Santos (o ícone por trás de “Rio, 40 Graus” e “Vidas Secas”), confere às cenas um ritmo pausado e observador que permite que o espectador contemple cuidadosamente o cotidiano daquela comunidade. O que não significa, porém, que o filme tenha perdido o caráter experimental que Glauber exibia desde seu primeiro curta, “Pátio”, mostrando-se particularmente notável na cena em que Cota, a nova companheira de Firmino, corre em direção ao mar durante um “barravento”, numa ação que a montagem intercala com imagens (rápidas) de plantas, cachorros, ondas e areias arrastadas pela ventania.
Mas “Barravento” também é importante ao refletir a mentalidade que o próprio Glauber Rocha preservava, na época, a respeito de crenças e descrenças – e na carta que o cineasta e crítico Gustavo Dahl lhe escreveu em 1964, quando “Deus e o Diabo na Terra do Sol” era promovido e ovacionado em Cannes, o autor diz que, em “Barravento”, Glauber “acreditava, mas tinha vontade de não acreditar”. Isto se faz presente no longa de estreia do diretor, já que boa parte dos personagens passa a maior parte do tempo tentando negar o misticismo que pode haver entorno de um ícone (Firmino quer desconstruir a ideia de que Aruan é um santo) ou acreditando em esperanças que sempre resultaram em frustrações (“Temos é que ficar rezando e esperando um milagre do céu”, afirma uma idosa após relatar sua desilusão ao sair da seca do Norte, chegar ao litoral e perceber que nada havia melhorado).
O que não muda o fato de que, no fim das contas, há algo de místico no destino de certos personagens – e a crença, portanto, jamais é invalidada. Aliás, a forma como “Barravento” lida com o personagem de Aruan é bastante curiosa: se estabelecendo como um ícone inquestionável, o pescador protagoniza ações que levam a aldeia a acreditar numa imagem “protegida” e invariavelmente inspira seus companheiros de várias maneiras (não à toa, muitos destes resolvem dispensar a rede na hora de pescar) – por outro lado, Aruan nunca se enxerga como o “santo” que todos apregoam, sentindo medo, desconfiança e hesitação em diversos momentos cruciais de sua jornada (ao ser convocado para uma missão que testará sua “proteção”, o protagonista exibe uma insegurança difícil de evitar).
Neste sentido, Ruy Gardnier estava correto quando afirmou, no texto “Deus e o Diabo no Mito de Glauber”, que o herói e o projeto glauberiano já estavam em gestação desde “Barravento” – em outras palavras: logo em seu primeiro longa, Glauber já trazia um protagonista que se encontrava diante de uma liderança. A trajetória de Aruan comprova o que Gardnier defendeu em seu texto: “Glauber estava longe de ser um iconoclasta; na verdade, era um grande iconômano” – e este fascínio por ícones encontra-se na visão que o diretor e os pescadores da aldeia têm a respeito de Aruan, por mais que este se recuse a aceitar seu status mítico.
Levando isto em consideração, Firmino se estabelece como um antagonista perfeito para Aruan, pois é um sujeito que constantemente nega suas origens e ridiculariza os companheiros que preservam suas raízes no litoral – o que se reflete especialmente em suas roupas, que, compostas por terno e chapéu brancos, sugerem que Firmino se deixou seduzir pelos costumes dos exploradores e das regiões urbanas.
O que não anula o peso de seus gritos pontuais – e quando ouvimos a frase “Ninguém liga para quem é preto e pobre” sair de sua boca, constatamos com pesar que “Barravento” continua a servir como um reflexo triste do que a sociedade brasileira representa em termos de desigualdade e exploração.
1 Comentário para "Crítica: Barravento"
Assisti ” Barra vento” ontem, obrigada pelo olhar sensível ao filme.