Mostra Um Curta Por Dia 2025

Baixo Centro

Cinco perdidos numa noite densa

Por Francisco Carbone

Durante da Mostra de Cinema de Tiradentes 2018

Baixo Centro

Há de se louvar que o cinema brasileiro comece a observar mazelas de outras metrópoles, doenças sociais de periferias fora dos já citados anteriormente nas imagens estabelecidas e tanto debatidas. Minas Gerais, por exemplo, é cenário de “Baixo Centro”, filme dirigido pela dupla Ewerton Belico e Samuel Marotta e que compete na Mostra Aurora nesse Festival de Tiradentes 2018. Ambientado exclusivamente na noite da quebrada mineira, com suas comunidades, caminhadas, delírios noturnos, encontros de amor fugazes e shows ao ar livre, o filme ameaça transpirar o cheiro quente dos desgarrados e da fauna urbana, centrando foco em cinco animais locais em quebra da ruptura formal no cinema, nos encontros e na estrutura social. Apresentação feita e formada uma rede de relações entre eles e esse quinteto pouco a pouco começa a desmoronar na tela, mediante ingestão de males que vão das drogas à paixão. Escolher um caminho de mínima sugestão em um projeto tão liberto de formas habituais pode ter um preço a pagar e o longa não rejeita o desafio.

Enquanto há um despojamento dos atores e das normas quadradas de atuação ou interpretação de valores, imageticamente nada foi tão forte esse ano em Tiradentes até agora. A espetacular fotografia de Leonardo Feliciano (o gênio por trás de ‘Arábia’, ‘Branco Sai Preto Fica’, ‘Constelações’ e ‘À Parte do Inferno’) dá texturas tanto a cidade que se move quanto aos corpos fotografados ou filmados à perfeição. Nesse trabalho conjunto dos diretores com Leonardo se extrai um dos casamentos mais felizes daqui da Mostra, não apenas por utilizar a luz noturna em total integração com a proposta estética do longa, mas também pelo balé de imagens promovido na tela, em movimentação de câmera sempre a captar o tanto de deslocamento aqueles corpos empreendem no cruzamento com a própria cidade ao seu redor. A montagem de Luiz Pretti também cadencia essas imagens potentes e cria uma estrutura de entendimento cuja lógica é organizar o fluxo de ideias coordenado em cena, em espasmos.

Não há necessariamente uma trama a se seguir, propriamente falando. Apesar de existir um grupo de personagens reconhecíveis na tela e eles se relacionarem entre si com uma espécie de possíveis intenções a se seguir, essas situações só abrem espaço para reflexões acerca do próprio deslocamento, das interações entre eles ou em silêncios constantes que refletem obviamente o vazio daquelas vidas, mesmo que inseridas num contexto de opressão social e emocional. O roteiro de “Baixo Centro” segue um grupo de cenas/momentos onde cada um desses encontros (entre si ou com o cenário em particular) é quase definitivo sobre o debate em questão naquelas pré-determinações. De situações bem leves envolvendo uma explosão de desejo carnal até momentos de densidade crescente em diálogos sobre uma queda no vício, tudo é intenso em camadas de expansão, onde o descompromisso inicial dá lugar a um crescente estado de incômodo e exasperação, como se a malha urbana carente conseguisse acessar a nossa e tornasse aquelas micro existências em fantasmas frágeis sem rumo, em meio a sons internos e externos.

Como em outros títulos já vistos em Tiradentes esse ano, aproximadamente na metade do longa o que se desenhava como uma noite afetos feitos e desfeitos pelas ruas mais tristes de Minas começa a sutilmente dar lugar a uma espécie de tratado (ou depoimentos?) sobre as enfermidades de hoje em centros, sejam elas palpáveis ou não. Aos poucos “Baixo Centro” cai numa zona escura e depressiva e não parece muito interessado em voltar, ou pelo menos parece escolher esse movimento não apenas com decisão como também sem reservas. Os males da alma começam a parecer ínfimos mediante o que se ingere com regularidade. Então em determinado momento tudo parece fazer mais sentido em um tratamento externo ao filme do que àquele grupo, que passam a servir de voz de uma geração, esquecendo do apelo particular, que não seria o que importa como também encontraria muito mais relevância se observado de dentro. Esse é um ponto de desligamento do projeto com o seu interior, o que faz com que sua força fique comprometida. Acho que um projeto tão potente em sua mise-en-scene poderia não ceder a tentação muito deslocada do depoimento em primeira pessoa pra tela, que inclusive nem tem nada a ver com o material.

Perto de seu encerramento, “Baixo Centro” parece começar a mostrar sinais de esgotamento temático, e o filme passa a ser apenas mais uma versão de corpos em movimento sobre a cidade, não que isso não renda possa render um grande filme (o oposto do curta ‘O Olho e o Espírito’, apresentado em competição), mas foi apresentado um quadro mais amplo que acaba fazendo falta quando a opção por algo mais íntimo parecia fazer sentido. Quando o recorte muda de lado e o olhar passa a querer adensar situações que já são naturalmente densas, e fica a impressão que o mergulho num certo estado de espírito interiorizado perde a conexão com o olhar sobre a cidade, que não é humana portanto precisa ser relativizada de maneira externa. Ainda que belas, as imagens acabam por se tornar excessivas e seu desfecho acaba levando o filme para um ainda terceiro lado, nada inesperado aquela altura, mas ainda mais desnecessário e quase panfletário, transformando um longa poético e intenso num projeto categorizado e compartimentado em si, com uma linha de conexão se não forçada mas pelo menos imposta, num tráfego deslocado entre a beleza e a feiura da periferia. Ok, ele existe e não pode ser calado… muito menos evidenciado de supetão.

3 Nota do Crítico 5 1

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