B.O.
Um metafilme sem metas
Por Michel Araújo
Filmes de comédia auto referenciais sempre dificultam determinar até que camada de reflexão podemos nos permitir levar numa análise mais aprofundada. Títulos como “Todo Mundo em Pânico” dos irmãos Wayans, ou “Apertem os Cintos o Piloto Sumiu” de David Zucker tornam mais explícito a referência ao repertório popular de filmes de terror, suspense ou drama que são parodiados. Já o filme brasileiro “B.O.” (2019), de Daniel Belmonde e Pedro Cadore, não vai trabalhar numa chave tão direta com seus referenciais, mas irá para um lado da estereotipização dos procedimentos tanta da comédia contemporânea de grande circuito quanto do drama introspectivo de pequeno circuito de festivais. Dentro da narrativa, ambos os gêneros se entrecruzam por advento do acaso e tal metalinguagem, apesar de produzir um resultado moderadamente interessante, não aparenta ser muito consciente de si mesma.
A trama de “B.O.” (2019) brinca com o conceito da produção cinematográfica em função do mercado e da demanda. Pedro (Daniel Belmonde) e Fabrício (André Pellegrino) são dois amigos estudantes de cinema que almejam realizar uma comédia fora do padrão, nonsense, – ao estilo de Judd Apatow e Seth Rogen, como cita o protagonista – porém, não conseguem o aval de nenhum produtor, visto que o cinema – de acordo com o personagem ironicamente interpretado pelo ex-Zorra Total, Nelson Freitas – é para “pôr todos os problemas numa caixinha, e só abrir quando sair da sessão”. Não há brecha para sua comédia não convencional, que trará mais dúvidas ao público do que gargalhadas. Os amigos, então, investem na possibilidade de arquitetar um melodrama familiar visando os festivais mais cultos – seu objetivo principal é especificamente o Festival do Rio. Com uma equipe completamente inusitada – elenco incluindo um youtuber famoso e um ator de teatro introspectivo – e um produtor que secretamente é traficante de drogas, a produção passará por inúmeros contratempos até que, após a finalização da obra, ambos os amigos saem desesperançosos e seguem outros rumos que não o cinema.
O arco narrativo em questão parece ter sido construído da mesma maneira que os personagens escreveram o arco de seu melodrama de festival: receita pronta, com regras bem esquematizadas. Dois amigos com um projeto ambicioso, uma enxurrada de desastres, a perda de esperança, a reviravolta, a volta da esperança, o final feliz que consuma o objetivo inicial apesar de quase toda a obra apontar para o fracasso do mesmo. Há um quê de autenticidade nas atuações e momentos de fato cômicos ao longo da obra, mas esses pontos específicos não compensam o todo do filme que em quase nada se diferencia de outras comédias brasileiras – mais especificamente as apelidadas “globochanchadas” – em termos de estrutura e narrativa. O tema em si presta mais tributo às produções estrangeiras, os personagens principais vez por outra fazem menções e referências a obras e atores da Hollywood contemporânea, o que no fim não esconde sua profunda semelhança com os produtos de seus conterrâneos brasileiros – dos quais os personagens de Pedro e Fabrício parecem tanto querer se diferenciar.
Há uma questão que chamou a atenção nos últimos dois ou três segundos da obra. Quando Pedro e Fabrício estão finalmente filmando sua comédia inusitada e há o grito de “corta”, o elenco cai em gargalhada pouco antes de virem os crédito finais. Novamente, não é uma ferramenta extraordinária essa quase “quebra da quarta parede”. Mas seria esse momento de disrupção, talvez, um apontamento para uma autoconsciência do próprio filme? Estariam os personagens rindo de toda a trajetória que decorre em “B.O.”, com seus erros e acertos? Ou seria mais um alívio cômico sem muito propósito dentro da estrutura do filme? Aqui retornamos à questão inicial de que “filmes de comédia auto referenciais sempre dificultam determinar até que camada de reflexão podemos nos permitir levar numa análise mais aprofundada”. “B.O.” certamente não é um tratado sobre a forma fílmica da comédia nem sobre os desafios da produção, considerando sua representação por demais caricata de praticamente todos os personagens da trama, em seu desenrolar farsesco. Se em sua auto referência e autoconsciência o filme almeja atingir de alguma forma uma metalinguagem, essas questões ficam gravemente mascaradas pela forma, pela estrutura, e pelo conteúdo, que levam o espectador a “colocar todos os problemas numa caixinha, e só abrir quando sair da sala de cinema”.
https://www.youtube.com/watch?v=V6hbsTJUke8