Curta Paranagua 2024

Azougue Nazaré

Misteriosamente o Maracatu Surgiu

Por Gabriel Silveira

Durante o Festival do Rio 2018

Azougue Nazaré

Apenas queria mais uma sessão de “Azougue Nazaré” para experienciar novamente aquele primeiro duelo espetacular conduzido e quase vencido em um nocaute por Catita. Naquele primeiro momento da encenação do filme encontrei-me à deriva tentando destrinchar a mise-en-scène, perdidíssimo (pela provável quinta vez no festival), tentando compreender a ordem de natureza da performance daqueles atores que, ora eram de uma naturalidade absurda, ora atuavam dentro cena sob um regime de decupagem super conciso. Naquele redemoinho de rimas, a faceta do que era roteirizado e do que parecia improviso dentro do duelo dançava sobre uma linha muito tênue. Mas foram necessárias apenas mais três cenas para se compreender que, desta vez, o cenário era o contrário de “Eleições” de Alice Riff, a encenação despencou para uma diegese ficcional muito bem estabelecida, apesar das cadências e des-cadências.

O mais curioso era o fator de estranhamento na performance do elenco que parecia sempre abrir uma fresta para a suspeita da origem da cena, e isso não de uma maneira onde alguém parecia “entregar algo”, como uma falha ou castração performática. Porque o nível de entrega de todo o elenco parecia sempre no último nível. Não como se não já fosse possível cogitar a escolha de atores regionais que tivessem uma maleabilidade maior para lidar com o material cultural do texto, mas todos eles pareciam brincar com a encenação de uma maneira onde tudo ecoava como uma grande ciranda daquelas vozes, daqueles corpos que pareciam falar de si com toda a confiança.

Eventualmente, fica explícito, como veio também o diretor explanar ao fim da sessão de “Azougue Nazaré”, que toda aquela encenação e aquelas personagens foram composta em cima de de indivíduos que antes seriam personagens de um projeto de documentário efetivado. Aqueles atores seguiam o texto do roteiro afim de alcançar um naturalismo neo-realista que era mais que nato àqueles atores, não somente porque estes eram indivíduos que tinham domínio do objeto e dos processos culturais em questão. Mestre Barachinha e companhia exalavam na tela seus desejos e suas vontades de encenar, uma química que, quando comparada a certas iniciativas proto-neo-realistas europeias, botam o campesinato fetichizado por cineastas revoluzionadores (que está em cena na marra querendo ir pra casa preparar sua boia-fria) no chinelo.

As performances parecem para os atores, praticamente, alegorias de si, se torna impossível para eles não exalarem essas verdades toda vez que engajam em um duelo ou em alguma performance musical. Curiosa foi a decisão de Tiago Melo de escalar o genial Mestre Barachinha como o antagonista da trama. O ancião do culto do Maracatu incorporaria um ex-integrante do maracatu recém convertido em pastor, agora líder de um dos cultos evangélicos da cidade. Acabou como a única performance que destacava-se notoriamente como extremamente fora do lugar, aquele gênio da gingada do maracatu incorporando um velho pastor frustrado e reprimido acabava gerando quase que um elefante branco na cena, por algo que as vezes soava como uma falta de timming aparente pela zona de estranhamento total do ator com a personagem.

No entanto, parece que o homem acabou acostumando-se com aquele corpo cênico e acabou, por fim, atingindo uma desenvoltura que a verossimilhança da obra parecia almejar, desenhando o mais cínico santo come-quieto de Nazaré da Mata. O que é uma questão que, quando justaposta à harmonia um tanto que anárquica da decupagem, acaba afirmando-se como uma qualidade primária deste corpo fílmico que parece sempre estar procurando o momento certo para entrar com a cadência perfeita no compasso ideal, mesmo que para isso há de se aceitar e enfrentar os perrengues do improviso.

O lance de “Azougue Nazaré” é que a obra faz de sua maleabilidade formal uma verdadeira ciranda cênica, onde o espaço para o lúdico e a narrativa dão as mãos para girar em um tempo onde sua dramaturgia catalisa em uma intensidade sensorial e o formalismo primariamente sensorial integra-se/mescla-se/rima-se com a tradição do mítico e do misticismo oral de uma maneira onde torna-se teleológico por excelência. É quando a força do maracatu começa a fazer-se ainda mais presente no filme, sem pudor algum, que a materialidade da diegese acaba, também, libertando-se, mostrando suas cores (literalmente), seus corpos, seus desejos e seus santos numa explosão libidinosa que te apronta para cair no olho da roda.

 

4 Nota do Crítico 5 1

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