As Confissões
A moralidade nossa de cada dia
Por Fabricio Duque
Diferentemente da estética da maioria do cinema francês atual que se reinventa na comédia à moda cópia de Hollywood, o cinema italiano cada vez abraça mais a autoralidade de seus próprios diretores, como Paolo Sorrentino e Nanni Moretti, sem, contudo, esquecer das marcantes características construídas pela filmografia de Federico Fellini, por exemplo. No filme em questão aqui, “As Confissões”, do diretor Roberto Andò (de “Viva a Liberdade!”), que está na seleção da mostra “8 ½ Festa do Cinema Italiano 2016”, é impossível não perceber os elementos conjugados de narrativa estilística (de experimentação angular visual) e da atmosfera existencialista (de potencializar o silêncio como sensorial e como indicativo não clichê – mitigando assim gatilhos comuns de auto explicação).
Em “As Confissões”, busca-se o contexto do tema filosófico-político-religioso (de até que ponto o direito divino do anonimato transforma-se em dever de domínio público em prol do social), que se desenvolve pela construção do jogo de cena interpretativo pelas elipses temporais de micro-ações continuadas (em um contrastante cotidiano etéreo). É fornecido ao espectador o caminho “prisão” da curiosidade, devido a um trágico, inesperado e misterioso acontecimento ocorrido em um hotel de luxo na Alemanha, um G8 (grupo internacional que reúne os países mais industrializados do mundo) dos ministros de economia que estão reunidos a fim de adotar uma manobra secreta que afetará gravemente alguns países., entre momentos descontraídos de violão (cantando “Walk On The Wild Side”, de Lou Reed – cuja metáfora “Um passeio pelo lado selvagem” é observada pelo monge). Além deles, também está ali um monge italiano, Roberto Salus (o sempre irretocável ator Toni Servillo – que interpretou um político insatisfeito em “Viva a Liberdade”), que possui uma visão livre (perceptível logo nas primeiras cenas – ele de branco entre mulheres muçulmanas de preto), detalhista, simplista, naturalista, paciente, analítica e resignada por costume de seu próprio ofício (lembrando em muito “A Grande Beleza”, de Paolo Sorrentino).
A reunião necessita ser suspensa. E em um clima de dúvida e medo, é iniciado, de lógica quase óbvia (já que estamos retratando seres humanos dotados de idiossincrasias mimadas e egocêntricas), um embate: os ministros suspeitam que Salus, por meio da confissão de um deles, tenha descoberto sobre a terrível manobra, e fazem de tudo para que ele diga aquilo que sabe, travando o questionamento da ética-moral dos preceitos dogmáticos da Igreja Católica. Esses líderes embasam seus discursos em livros referenciados (até “arcaicos” e obsoletos) com o intuito de “conquistar” suas ideias, que são rebatidas de forma direta e perspicaz, entre investigações de um “show” televisivo por circuitos de câmera de segurança. Assim, eles tentam juntar os quebra-cabeças (detalhes – provas do crime – que ligam os pontos), em elucubrações mirabolantes e em adjetivações da vítima (“um otimista nesta crise”, “viciado em amor”, e que “era de um ótimo humor”), para descobrir o porquê, as razões por trás desse assassinato (de um suicídio premeditado ou “de ter causado a própria morte”) e quem matou. E então, o longa-metragem “confessa” segredos, vulnerabilidades e hipocrisias a seu público, que passivamente observa por bastidores (na perspectiva “intrusa” da “cortesia” do monge – mas que sutilmente “provoca” com a cumplicidade de misteriosos sorrisos, nos imergindo em uma teia thriller).
“As Confissões” elenca um time de conhecidos atores, que inclui Daniel Auteuil, Pierfrancesco Favino, Moritz Bleibtreu (ator de “Corra Lola, Corra”), Connie Nielsen, Marie-Josée Croze, Lambert Wilson; conduz sua câmera com afiada precisão estética; trabalha o roteiro com maestria; busca unir autoralidade com edição equilibrada da narrativa; e potencializa a questão moral da confissão nos dias atuais a “almas sociais” ávidas pelo conhecimento sensacionalista de saciar suas curiosidades (que apenas “respeita o silêncio” como uma imposição social). O próprio filme “quebra o protocolo”, e, intercala, aos poucos, pontuações existencialistas (mais de análises terapeutas pessoais, não políticas, a verdade que soa “blasfema”, sobre “epitáfios” e do “tempo como se pudesse dominá-lo”) deste “encontro” privado com o representante de Deus (e a libertação póstuma do ser terreno aos céus). “Na verdade, o tempo não existe”, diz-se. Por isso, foi premiado pelo Sindicato dos Críticos de Cinema Italianos 2016 como Melhor Fotografia para Maurizio Calvesi (pela “embate” quase monocromático do branco e do preto). “Inocente ou culpado? Sabotagem? Covardia?”, pergunta-se.
Talvez, se “dissecarmos” isto, chegaremos possivelmente ao meio termo do cinquenta porcento, e excluiremos para sempre a obrigatoriedade maniqueísta que tanto se procura e se projeta, explícita no livro “A Criança Sábia”, de Claire Seth, reverberando a “guerra” orgulhosa (de poderosos não poderem saber e um simples monge – que personifica a Igreja que possui a informação mas está respaldado a não divulgá-la); e a histeria popular dos utópicos protestos individuais. Como na música de Lou Reed citada anteriormente, “Little Joe nunca chegou a revelar. Todo mundo tinha que pagar e pagar”, “As Confissões” é uma crítica acirrada de exposição de culpas, medos internos e desesperos tangíveis, que coloca a “apática” e controlada Igreja, literalmente, em um detector de mentiras e em um “novo” batismo, desencadeando segredos “libertados”, desaparecimento que surpreende e final que desestrutura com a estranheza o próprio caminho construído pelo filme, como uma fábula político-religiosa-social-comportamental.