A silenciosa estrada-odisseia do recomeçar
Por Fabricio Duque
Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2017
É inegável a importância e relevância quando um filme é selecionado a mostras competitivas de festivais de cinema. É fato. Mas também pode configurar como um “tiro no pé”, já que, mesmo sem querer, nossas percepções ficam mais aguçadas a comparar qualidades e erros. Nós sempre ficamos incomodados com premiações, ainda que tenhamos criado um prêmio Vertentes do Cinema, porque cada obra é única e particular, com suas múltiplas narrativas e caminhos possíveis de existir. “Arábia”, dos diretores João Dumans e Affonso Uchoa (de “A Vizinhança do Tigre”), que passou pelo Festival de Roterdã, e que concorreu ao Troféu Candango no Festival de Brasília 2017 (saindo vitorioso nas categorias de Melhor Filme, Melhor Montagem e Melhor Trilha-Sonora – Francisco Cesar e Cristopher Mack), é um deles.
“Arábia”, interpretado livremente do conto homônimo do escritor James Joyce, é, acima de tudo, uma homenagem ao ser humano. Sua narrativa “road movie”, que passa por tipos e causos, híbrida, por conjugar o naturalismo da ficção e a cumplicidade espontânea de não atores, acontece na estrada, intercalando instantes em histórias paralelas, vivências e quereres de personagens que somem e se encontram em outros momentos. Todos são importantes protagonistas e coadjuvantes ao mesmo tempo. Ora acompanhando um garoto em sua bicicleta (e gaita). Ora um homem indo de um lugar a outro. É sinestésico, porque nós, espectadores, conseguimos sentir a liberdade de cada um deles, principalmente pela montagem de Luiz Pretti e Rodrigo Lima, que unem a atmosfera dos planos estendidos da Alumbramento Filmes com a estética direta contemplativa da Belair.
O roteiro constrói-se por detalhes, toques, micro-ações (como a nebulização e ou a sujeira-poeira da indústria) e sons ao redor, como a rotina dos barulhos da fábrica. E assim, o público atinge a epifania ao perceber que tudo é uma fábula metafórica e realista sobre a passagem do tempo e suas influências a tão sonhada modernidade e progresso.
“Arábia” simplifica a mise en scène quando fornece o elemento temporal da espera e da observação, como a mãe e os irmãos deste garoto sozinhos em casa. A sinopse nos conta que em uma antiga fábrica de alumínio em Ouro Preto, Minas Gerais, um jovem acaba encontrando o diário de um trabalhador que sofreu um acidente. Com a história, o filme apresenta um panorama das condições de vida desses trabalhadores marginalizados.
Sim, o longa-metragem também é político-social. Critica com silêncios, com histórias, com a vida nua e crua, e com “suspenses tolerantes”. Se aceitarmos que esta caminhada é dentro para fora, então não nos incomodaremos com o anti-naturalismo dos moradores locais, que estão atores. “O mundo só tem matação”, diz-se. Não se sabe se é “viajar muito na batatinha”, mas há uma semelhança com “Os Famosos e os Duendes da Morte”, de Esmir Filho. Só que aqui mais silencioso. Mais inferido.
“No fim de tudo, só sobra mesmo é a lembrança do que a gente passou”, diz-se com ingenuidade. Uma inocência sentimental. De resignação ao próprio estágio atual, mas que ainda deseja “escrever vinte anos depois”, “se arriscar por muito pouco” e ou “ganhar pontos com Deus”, com música de Maria Bethânia.
É sobre “ganhar e perder”, “começar a pensar na sorte” e ter a “estrada a seu lado”. Com sarcasmo silencioso, “Arábia” apresenta uma “esquisitice diferente”, de contemplar a imagem e de retratar idiossincrasias, como “nunca gostar de dormir”. Esta, um simbolismo à nunca descansar, nunca perder tempo na vida. É também um filme sobre recomeços pelo bucolismo da simplicidade. De se buscar o menos. De se esperar o menos. De conviver com tédio. De passar o tempo. É a máxima de que “quanto menos temos, mais completo vivemos, porque temos a nós mesmos, sem distrações materiais”.
“Um cachorrinho não pode enfrentar um dogão, mas se você junta muitos cachorrinhos, o dogão fica pequeno”, ensina-se a filosofia popular de vivências simplificadas (“mexerica o dia todo”). Aos poucos, a narrativa perde ritmo, fica fora de tom, mais forçada e encenada. Sim, esta é uma consequência mais que previsível em gêneros híbridos que querem parecer espontâneos-livres-amadores.
“Arábia” é uma nova representação de “Faroeste Caboclo”, música do grupo Legião Urbana, com o “Cowboy Fora da Lei”, de Raul Seixas, com Bob Marley, e com “violinos sertanejos”. É a odisseia do recomeço. De se ir longe para descobrir o que realmente é e precisa. O protagonista da vez ouve histórias e outros ensinamentos populares. “Todo mundo tinha uma história, até os calados”, diz-se com humor natural de inocência perdida e altamente verdadeira, entre “amanhecer o novo” e a “reforma no puteiro”. É um filme sobre escolhas, sobre sentir ou não “culpas”, sobre o peso de se carregar, sobre inerentes competições que estimulam o continuar da existência e o não desistir. É um filme “quase família” de lembranças, que conecta histórias, que busca redenção, que entende a fuga, que ajuda no caminho, que cria o tempo para a mente divagar, que respeita a solidão silenciosa e que “acorda de um pesadelo”, esta sensação que pede força para salvar a própria alma pela potência de andar. É sobre alguém (atores irretocáveis, principalmente pela maestria de Aristides de Souza, o Juninho de Contagem, de “A Vizinhança do Tigre”) “igual a todo mundo”, que “teve a via um pouco diferente” e que é “difícil escolher um momento marcante para contar”.