O Dilema da Fé Dramática
Por Michel Araújo
Diversos filmes já lidaram com os temas do mito da fé cristã. Dentro do gênero de terror temos exemplos como o consagrado “O Exorcista” (1973) de William Friedkin, ou os mais recentes “O Último Exorcismo” (2010) de Daniel Stamm e “A Bruxa” (2016) de Robert Eggers. A questão da cristandade em “A Aparição” (2018), entretanto, não nos leva para o lado do horror como os títulos previamente mencionados o fizeram – e inclusive foram levados com razoável condescendência do público de suas respectivas épocas por conta disso –, mas o longa francês caminha pelo sutil e nebuloso percurso do drama e do suspense investigativo, postulando o tema da fé como uma persistente dúvida, a qual é sanada de forma não muito satisfatória na resolução da obra, tornando essa linha de pensamento que trilhamos, repleta de questionamentos, talvez cansativa demais.
Integrante da curadoria do Festival Varilux de Cinema Francês 2018, o longa metragem de Xavier Gianolli muito tem a ver com o restante de sua filmografia, em se tratando da temática de “levar uma fantasia até as últimas consequências”, como em seus anteriores títulos “Marguerite” (2015) e “À L’Origine” (2009), tornando evidente a autoria e autenticidade do diretor francês. O filme trata de um renomado repórter, Jaques (Vincent Lindon, vencedor do prêmio de melhor ator em Cannes 2015 por “A Loi de Marchè”) que segue numa missão a uma pequena vila nos Alpes franceses para investigar a história de ditas aparições da Virgem Maria. Lá encontra a jovem Anna (Galatéa Bellugi), que assume papel quase messiânico na vila, sendo mobilizadora dos aparentemente ingênuos crentes que peregrinam para a região. A trama central lida com a investigação de Jaques acerca da veracidade da história de Anna e de seus relatos sobre a aparição da Virgem Maria, ao mesmo tempo que os dois desenvolvem um forte laço no processo.
Pensando no processo de construção de um drama ou suspense investigativo, o “pay off”, a revelação, tem de ser solidamente construída – considerando estar dentro de um formato narrativo padrão – para que a estrutura da obra inteira não colida como uma pilha de cartas. É o fenômeno que ficou conhecido pelo filme “Os Suspeitos” (1995) de Bryan Singer como o “efeito Keyser Söze”: uma trama lenta e não muito envolvente que depende inteiramente de sua revelação final para que o filme inteiro seja considerado surpreendente. É, obviamente, complicado tratar de narrativas desse tipo sem arruinar a experiência com algum famigerado spoiler, portanto as considerações acerca desse aspecto da obra cessam por aqui. Para além disso, um dos pontos mais fortes da obra é a atuação do ex vencedor de Cannes, Vincent Lindon, que carrega o peso dramático da narrativa quase por conta própria. Sua contraparte na trama, a atriz Galatéa Bellugi, talvez faz um papel de dualidade e mistério bem convincente, apesar de não ser exatamente páreo para o peso de Lindon em sua construção de personagem aparentemente minuciosa. O trabalho de fotografia é belo apesar de raso, e os enquadramentos são bem pontuais e perspicazes, com alguns planos bem interessante como a cena que Anna se deita ao chão em posição de cruz, numa mise-em-scène corporal que apesar de apelativa, é efetiva em sua dramaticidade.
O que talvez seja o dilema dos dramas de fé seja seu compromisso com a resolução positiva, ou “afirmativa”. Necessariamente o ceticismo divide a conclusão em dois possíveis arcos: a “comprovação da verdade” ou o “desmascaramento da mentira”. Em “A Aparição”, infelizmente as tendências da obra já tornam claro qual rumo irá tomar. Os diálogos por vezes intrigantes entre Anna e Jaques carecem de uma recompensa moral ou de qualquer liberdade de leitura apesar do momento que são encerradas os sanadas as dúvidas ao final da obra. Quer o final de uma obra religiosa ceda para a “verdade” ou para a “mentira”, o próprio ato de encerramento do mistério não nos favorece como sociedade para perpetuar um debate existencial tão significativo e importante que é a teologia, a qual tangia as questões relativas à nossa mortalidade, a finalidade de nossa existência e mesmo os fundamentos morais que preconizam as relações sociais há séculos. Apesar de uma experiência cinematográfica até mesmo saborosa, os questionamentos do filme tristemente não se perpetuam muito para além da tela a partir do momento que surgem os créditos finais.