Sua Alma Será Possuída
Por Fabricio Duque
Se estudarmos a história das bonecas, nós perceberemos que seus destinos, dotados de magia, fantasia, arte, religiosidade e rituais de passagem do casamento (“consolo da alma”) e feitas na maioria de barro, à imagem de Adão, estavam reservados a acompanhar os faraós na incursão ao mundo dos mortos e ou, como funerárias, substituir parentes escravos que antes eram enterrados vivos com seus reis. As bonecas eram consideradas pequenos totens que detinham poderes de vida e morte sobre as pessoas e mais a frente, uma diversão de adultos colecionadores. Alguns japoneses acreditam, ainda hoje, que se colocar uma boneca ao lado de uma criança enferma, a doença irá ser consumida pelo “brinquedo” e a cura acontecerá.
Esta premissa é desenvolvida com profundidade na saga cinematográfica “Annabelle”, mencionada, apenas como um detalhe, pela primeira vez em “A Invocação do Mal”, de James Wan, que aborda efeitos paranormais a fim de personificar em tela os poderes sobrenaturais por espíritos infelizes na Terra. A religião busca explicar os fenômenos inexplicáveis e metafísicos por diferentes nomenclaturas, mas que no final querem dizer exatamente o mesmo. O espiritismo conduz-se pela presença dos obsessores. O catolicismo, pelo exorcismo.
“Invocação do Mal” busca traduzir cientificamente que o “medo é definido como uma agitação, uma ansiedade causada pela presença ou iminência do perigo, seja um fantasma, espírito ou entidade, todos alimentam-se disso” e que os “três estágios da atividade demoníaca são: infestação, opressão e possessão. A infestação são os sussurros, os passos, a sensação de uma presença. Opressão, quando a vítima, geralmente os psicologicamente vulneráveis, é visada por uma força externa, acabando com a vítima e destruindo suas forças. E enfraquecida, vai ao terceira estágio: possessão”.
Em “Annabelle 2: A Criação do Mal”, o símbolo malévolo vem de uma boneca que invoca, mais uma vez, suas vítimas com sadismo, crueldade, sociopatia, elegância, espera, torturas, medos e loucuras. Mas desta vez o filme quer contar seu início, sua criação. O tema faz com que seja impossível não lembrar do seriado “Twin Peaks”, de David Lynch, por nos mostrar que não adianta lutar contra, ainda que todo nosso ser busque a sobrevivência.
Anos doze anos após a trágica morte de sua filha, um habilidoso artesão de bonecas e sua esposa decidem, por caridade, acolher em sua casa uma freira e dezenas de meninas desalojadas de um orfanato. Atormentado pelas lembranças traumáticas, o casal ainda precisa lidar com um a volta do demônio do passado: Annabelle, a boneca do mal.
“Annabelle 2: A Criação do Mal”, de David F. Sandberg (de “Quando as Luzes Se Apagam”), preenche todos os requisitos deste gênero de terror, uma ficção especulativa que objetiva a ideia abstrata do medo quando manipula sustos e fobias do espectador, o conduzindo pela sinestesia do elemento narrativo falso-óbvio da surpresa (geralmente a tragédia acontece no segundo momento não tão esperado) e pela presença da música, potencializada ao máximo por ruídos que rasgam a cena e atingem nossas sinapses, transmitindo um impulso nervoso de um neurônio a outro, principalmente na região cerebral amídgala, responsável pela sensação de medo.
Se em “Annabelle”, de John R. Leonetti, o roteiro opta por expandir em excesso mitologias, aqui, no filme em questão, sua condução, escrita por Gary Dauberman (da nova versão de “It – A Coisa”) prefere a expressão “menos é mais”, e assim, consegue ligar melhor os pontos narrativos ao fortalecer a ambiência de seus cenários, assustadores, sombrios e mórbidos, e a própria trama, com suas camadas-projeções existenciais de cada uma das personagens, principalmente de todas as meninas, que reverberam bullying, egoísmo, descaso com o próximo. “Annabelle 2: A Criação do Mal” é um jogo psicológico, uma negociação para se conseguir novamente a felicidade pré-tragédia. O pagamento: “sua alma”.
“Annabelle 2: A Criação do Mal” transcende seu público. Não só aos adoradores-apaixonados pelo gênero de terror-horror e ou por bonecas clássica-históricas. Nós temos aqui um filme feito sobre medida para agradar a cults, comerciais, gregos, troianos. Tudo porque investe com trabalho artesanal no desenvolvimento da história, sem esquecer de seus típicos-intrínsecos sustos, puladas na cadeira e coração batendo mais rápido. Recomendado.