Curta Paranagua 2024

Crítica: Animal Político

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O Um Porcento Transgressor de Uma Vaca

Por Fabricio Duque


Há duas formas de se utilizar referências-influências. Uma é pelo viés da literalidade, soando mais como um clichê-plágio disfarçado. A outra é pela incorporação da premissa-essência, aplicando, modificando, decodificando e dilapidando o conceito a própria forma autoral.

Esta última, a opção escolhida pelo diretor brasileiro Tião (do curta-metragem “Sem Coração”), estreante no longa-metragem “Animal Político”, para conduzir o público a suas alegorias e revoluções, ora verborrágicas, ora silenciosas, mas sempre totalitariamente catártica, metafórica, transgressora e sócio-político-comportamental existencialista, em uma atmosfera propositalmente amadora à moda das obras de Michel Gondry.

“Todo homem é um animal político” e “Todo indivíduo social é uma ilha” representam a filosofia concretista da realidade. A apatia melancólica versus a guerra solitária. Aqui, o filme agrega dois filmes quase separados em uma única trama, conectados pelo blues folk “Me and The Devil” de Robert Johnson, um dos maiores guitarristas de todos os tempos que morreu aos vinte e sete anos, quando bebeu um whisky envenenado com estricnina, supostamente preparado pelo dono do bar, o qual estava enciumado porque o músico supostamente flertou com sua mulher.

“Animal Político” é acima de tudo uma experiência. Imagética, sensorial, livre, simbólica. Como uma mistura da estranheza de David Lynch com o discurso direto de Glauber Rocha com a ficção científica (explícita referencial) de Stanley Kubrick e seu “2001 – Uma Odisseia no Espaço”. Já nos créditos de abertura (de trás para frente), nós espectadores somos envolvidos na sensação de tempo congelado por sua contemplação estendida da imagem.

Uma vaca sempre levou uma vida tranquila: ela tem pais que a amam, boas condições financeiras, muitos amigos. Ela sempre sai, se diverte, faz compras no shopping e passa o tempo na academia. Mesmo assim, existe uma sensação de vazio. A vaca tenta estudar e se tornar culta, mas isso também não alivia as angústias. Ela decide então partir sem um destino preciso, em busca de autoconhecimento.

O filme busca seguir no realismo fantástico. Toda sua condução deseja imprimir à linguagem um surrealismo figurativo, como por exemplo, homens de terno sem cabeça encontrando-se em lugares inóspitos. E ou o dia-a-dia narrado por uma vaca (a personagem principal – uma atriz irretocável com suas expressões faciais e olhar incisivo, pontual e de urgente silêncio) almoçando no restaurante, esperando no ponto de ônibus, sentada no trem, no salão de beleza, na danceteria, no Shopping Center, no churrasco familiar, no supermercado, na Ioga, na academia de ginástica, ouvindo uma música natalina clássica.

“Só preciso do básico mesmo, sem muito luxo”, diz como se fosse um pensamento inconsciente confrontado com alienação da realidade e com o consumo exacerbado sem limites. “Quanto mais caro, mais se sente bem”, “Dentes brancos, pernas fortes e auto estima alta”, tudo com uma resignada ironia.

A narrativa intercala com imagens de lembranças caseiras familiares da “infância feliz” que “não tem do que reclamar”. “Deus foi bom para mim”, agradece com melancolia. Mas este ser sofre com uma “sensação de vazio que não sabe de onde vem”. “Nem tudo pode ser assim, raso”.

A vaca (alegoria concretista) mudou a alimentação para ser mais “saudável”, usou drogas para “expandir a mente e melhorar a percepção”, “confrontou a arte”. Mas só teve “bad trip”. Não sabe o porque de não sentir nada. Vive o perigo existencialista da totalidade da compreensão. “Só os espelhos e os idiotas refletem sem pensar”, filosofa. A vaca, que “nunca se deu bem com as pessoas”, embarca em uma viagem road movie, pedindo carona, virando zumbi e fantasma (“é só alma”). É inevitável não referenciarmos ao filme francês “A Incrível Jornada de Jacqueline, A Vaca”, de Mohamed Hamidi.

Com isso, procura no bucolismo solitário uma saída, uma resposta, uma fuga, um descanso, umas férias bancadas pela família, o monólito de “2001”, o um porcento que o “diferencia dos primatas”, “alguma coisa para seguir”. Nesta viagem “Star Wars”, de George Lucas com “Na Natureza Selvagem”, de Sean Penn, recebe ensinamentos de um robô, um cyborg “Siri” (o mesmo do Iphone) com sotaque nordestino.

O segundo filme “A Pequena Caucasiana”, dentro deste filme, retira completamente o espectador da primeira história. Aqui, em um universo náufrago à moda da estética Jean-Luc Godard, de “Muito Romântico”, de Gustavo Jahn e Melissa Dullius, e de “A Lagoa Azul”, de Randal Kleiser, com fotografia antiga, polaroid, de arquivo perdido, somos inseridos na antropologia antropofágica deste humano que se torna canibal, selvagem e indígena pela necessidade da sobrevivência e para não perder totalmente a sanidade adquirida pelos homens com “um por cento de inteligência”.

Esta é a metáfora da “ilha” individual do próprio homem (uma mulher “super-homem” neste caso), que quando isolada recorre-se ao que tem para manter o “padrão” mundano (regras da ABNT – “o livro que sobrou” que “padroniza o pensamento”). Por mais que tentemos viver completamente sem ninguém, não conseguimos. Nós precisamos do outro, tanto que no filme “Náufrago”, a personagem de Tom Hanks “contrói” um amigo para conversar, uma bola chamada de “Sr. Wilson”.

A “Pequena Caucasiana”, rica, herdeira das produções de cana-de-açúcar, anda pelada, apenas de bota, dorme em um iglu de livros, morde um coelho e come as “joias” para sobreviver, enquanto discursa com impulsividade suas ideias reacionárias e enquanto uma imagem hipócrita sobreposta a mostra sentada em uma negra. “Como saber quem é nobre e quem é pobre?”.

Entre tentações do diabo do deserto, silêncios, formas de comunicação, a televisão (como bagagem do conhecimento adquirido) alienante passando uma novela, a figura Poltergeist, tudo é a mais pura metáfora crítica a nossa sociedade, e assim “deixar todo lixo para trás”, a “irritação da família”, as “coisas do passado”. “Espero uma doença para ser uma pessoa melhor”, diz.

“Animal Político”, exibido no Festival de Roterdã 2016, apresenta-se irregular em sua estranheza por tentar abordar vertentes críticas demais e interações teatralizadas com não-atores. Sim, o “inferno é o outro mesmo”, a “presença sim, mas principalmente a falta”. E assim, o filho retorna de seu caminho de “Santiago de Compostela” à “selva” da cidade grande, às reuniões de condomínio, ao Recife. Entrar em combustão aos moldes de “Tropykaos”, de Daniel Lisboa, é mais que obrigatório. Ter o “pensamento cristalizado” mais que necessário. E sentir com demasiadamente catarse a humanidade, mais que esperado. Recomendado.

4 Nota do Crítico 5 1

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