A Apoteose do Nada
Por Francisco Carbone
Durante a Mostra de São Paulo 2016
Particularmente acho complexo escrever sobre um filme divisor nesses tempos de polarização extrema sobre qualquer assunto, porque as pessoas confundem opinião embasada com achismo raso e desqualificam quem não concorda com elas. Abro assim meu texto do novo longa de Tom Ford porque ele acabou de ganhar o Grande Prêmio do Juri de Veneza e mesmo lá se viu numa barricada, entre amor e ódio. Ao sair da sessão, mesmo respeitando a opinião alheia e de amigos, me questiono como amar esse filme, que é exatamente o retrato de tudo na qual acusaram injustamente o ‘Demônio de Neon’ de Refn: superficial, estroboscópico sem motivo, disperso, bobo. Um desperdício generalizado, enfim.
Baseado no romance de Austin Wright, o filme tem um ponto de partida instigante até, o típico ‘filme dentro do filme’, sendo que uma das narrativas é na verdade um livro que está sendo lido. Esse livro foi escrito por Edward, ex-marido de Susan, a quem acabou de enviar uma cópia. Susan se tornou uma muito bem vestida e maquiada galerista de arte, embora nunca saibamos se ela é conceituada. Mas essa mulher está vazia, e ela descobre logo no início que seu atual marido (que também só sabemos que é rico, nenhuma informação a mais além de que ele precisa constantemente ir a Nova York) é infiel, e ao ler o livro do ex, Susan também se pega rememorando seu passado com ele. Logo, temos três frentes de narrativa: a vida de Susan atual, a vida de Susan e Edward no passado, e a trama do livro de Edward que Susan lê e é dramatizada no filme.
Ok, o filme tem umas brincadeiras divertidas, como encaixar objetos da realidade de Susan na dramatização do livro, uma espécie de ‘easter eggs’. Carros, objetos, datas e nomes são reproduzidos nas três histórias, assim como cenas espelhadas também, e causam uma tentativa de união de ideias. Só que isso não tem muita justificativa razoável, apenas tentando uma tese de que a realidade e a ficção se comunicam, quando na verdade isso só se consegue se você forçar muito a barra. Aliás, forçar a barra é algo constante no filme. Talvez a mais forte é a ideia de projeto que foi vendida e de que é corroborada por alguns pós-sessão, de que o filme trataria questões como excesso de valorização da estética no mundo atual, ou seja, os temas do longa de Refn. Pois isso não poderia ser mais diminuído, se é que existe algo desse tipo que seja ressonante e vá além da abertura (de fato impressionante), dos primeiros planos e de uma cena completamente perdida no meio referente a uma reunião de Susan na galeria; ao todo, não dariam 10 minutos de filme, e não mais isso é colocado de forma alguma.
Na verdade, ‘Animais Noturnos’ versa sobre culpa, desamor e solidão. Mas não sei dizer qual versão de cada personagem carece de mais empatia ou peso dramático. Todos parecem fantoches muito pouco articulados, sem vida para além dos super closes que Ford propõem; taí, um filme cuja uma das histórias tanto depende das paisagens dos rincões do Texas e que não as aproveita em nada, primando sempre pelo close. Closes esses que revelam absolutamente coisa alguma, porque como disse os personagens não tem estofo, nem os do passado, os do presente e muito menos os do livro. São borrões, linhas de sinopse ambulante que repetem diálogos expositivos a exaustão para justificar toda e qualquer atitude.
Com isso ninguém do elenco consegue entregar algo digno de nota, e talvez Aaron Taylor Johnson faça alguma diferença. Michael Shannon está bem, Amy Adams nada faz, Jake Gyllenhaal está inexplicável, em suas atitudes e arroubos absurdos. Mas os cameos mais engraçados vão para Andrea Riseborough, Michael Sheen e Jena Malone, que não fazemos ideia do que fazem em cena mas ao menos quebram a estrutura travada e pretensamente sóbria do filme. No fim das contas a nota positiva do elenco vai para Laura Linney, que só tem uma cena de uns 5 minutos mas marca o futuro de uma personagem com seu discurso (ainda que ele seja cliché puro). Tecnicamente, a fotografia de Seamus McGarvey não apresenta nada de especial, ao passo que a montagem de Joan Sobel e a trilha do premiado Abel Korzeniowski ainda tentem dar alguma bossa ao resultado.
É uma pena que esse projeto seja um naufrágio tão espetaculoso em praticamente todas as instâncias, não só porque é lamentável que grandes atores e um jovem diretor estejam envolvidos, como por observar que existia todo um mundo de possibilidades positivas por trás. Talvez o excesso de pretensão para lidar com uma narrativa cheia de camadas e personagens que precisavam de um background emocional sem nunca ter nos levaram até esse ponto acidentado, onde nada tem substância e tudo é um grande desperdício.