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Crítica: A Telenovela Errante

Ele sabia…

Por Vitor Velloso

Durante o CineBH 2018


O lendário diretor chileno, Raúl Ruiz, havia realizado uma série de filmagens na década 90, acabou abandonando o projeto e vai às telas pela mão da Valeria Sarmiento, viúva de Raúl. Esse material originou o filme: ”La Telenovela Errante”.

O longa possui uma estética televisiva, para brincar com o estilo de novela que víamos naquele momento. O que mais chama atenção, de cara, é o humor extremamente ácido do cineasta, são pequenas tiradas, todas absurdas, aliás, se tem algo que possa resumir os acontecimentos é isso, absurdo. Usando a linguagem da televisão, ele é capaz de assumir certos posicionamentos da imagem que por si são já são engraçados e ser político de uma forma ainda mais incisiva, através da ironia. O filme é estruturado em sete episódios, essa proposta fragmentada de narrativa funciona pela sucessão temática. Em geral, ele caçoa dos políticos e do Estado e seus representantes.

Os primeiros momentos de projeção são engraçadíssimos, satirizando os péssimos diálogos das novelas, ele consegue usar a literalidade e os tempos das falas a seu favor. A carreira do cineasta provou sua incrível habilidade em adaptar histórias para o cinema, conseguindo o incrível feito de realizar “Mistérios de Lisboa” em uma narrativa de 4h 15min sem soar minimamente entediante. Em “La Telenovela Errante”, Ruiz abraça todas as limitações da chamada “soap opera”, para construir uma linguagem que fortaleça a progressão de sua análise crítica pela cultura chilena e da história do país.

Embarcar nesta viagem cinematográfica pode ser um tanto exaustivo, pois, conceitualmente, os arquétipos, que o cinema militou contra, são revitalizados em uma encenação teatralizada. Contudo, compreendendo a proposta fílmica o espectador pode internalizar esses preconceitos e enxergá-los, aqui, como uma possibilidade, ainda que na paródia. Infelizmente, Ruiz, enxergava no Chile as chagas de Pinochet na memória nacional e com isso, decide criar esta narrativa ficcional onde o país não existe de fato, apenas através da realidade televisiva. Em um jogo entre realidade e ficção, o longa se desenvolve neste limite metafísico, trabalhando com a pós-modernidade de forma cada vez mais abstrata, por isso, a ficcionalização dos processos políticos são transformados em esquetes novelescas.

Não há necessidade de discorrer sobre os sete episódios separadamente, pois, a experiência que o público terá com a obra independe de sinopse. Uma coisa é digna de nota, quem souber sobre história e cultura do Chile, irá usufruir melhor as questões apresentadas. Mas não reconhecer-se na temática, é impossível, já que tivemos 21 anos de ditadura no Brasil. De certa forma a América Latina se traduz através de suas semelhanças e como a história de todos se resume em resistência, subdesenvolvimento e morte, é possível ler o contexto introduzido na tela. Além do fato, de ser um filme póstumo, é interessante analisar que Raúl Ruiz realizou o projeto já no Chile, logo após a ditadura, após um exílio que durava desde 73.

Após todos esses anos o diretor retorna à sua terra natal e compreende que a ditadura ainda exercia forte influência na população, mesmo após sua queda. Surpreso, ou não, ele filma “La Telenovela Errante”, para debater esta situação. A experiência que se tem no Brasil, prova que quanto maior o governo ditatorial, maior a quantidade de reacionários e protofascistas que irão surgir. Pois, a geração que nasce durante o processo antidemocrático, cresce castrado e limitado ao mundo. Ao envelhecer irá se tornar aquele algoz ao qual um dia bradou sua arma de plástico e cederá ao conservadorismo por uma questão de memória afetiva distorcida através da ignorância. Este ano de eleições vemos como esses desdobramentos afetam na política de modo direto. Não à toa, diversas bandas que surgiram no final da década de setenta ou início de oitenta, possuem, hoje, um discurso conservador e pouco dialético, gritando nomes de juízes a esmo, acreditando nas instituições.

Esta situação onde se encontra o momento político da América Latina, soando quase uma projeção de uma hiper realidade. Sendo a massa domesticada e alienada pelas emissoras de TV, não apenas pelos noticiários mas pelas novelas também, onde há, de forma menos explícita, uma conscientização de uma realidade que nada se parece com o país em questão. Quando a massa passa a acreditar em todos os arquétipos presentes na novela, o golpe já é uma realidade, ainda que não tenha se concretizado, para o povo ele não soará golpe, apenas uma mudança necessária, mesmo que haja ódio, será apenas um avanço. A lavagem cerebral foi concluída. Que Raúl Ruiz nos acuda.

3 Nota do Crítico 5 1

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