A realidade pela projeção do subconsciente
Por Fabricio Duque
Assistir a uma obra do cineasta sueco Ingmar Bergman é mergulhar literalmente nas infinitas possibilidades da psique humana. Esta viagem desnuda máscaras, personificando os demônios e os monstros mais subconscientes. Mais escondidos. “A Hora do Lobo”, realizado em 1967, logo após ter filmado “Persona – Quando Duas Mulheres Pecam” (e que insere ruídos da montagem e diálogos bastidores destes cenários), apresenta uma nova vertente: ser um filme surrealista e gótico de terror psicológico, que metaforiza loucuras sociais em palpáveis e presentes vampiros, seres canibais que se alimentam de energias e sugam esperanças.
O longa-metragem é composto de análises psicanalistas em uma ateia (confusa pela ausência de Deus) confissão dos mais profundos desejos bipolares que todo e qualquer ser humano carrega: angústia, vergonha, culpa e medo de represálias. São estágios do existir e de suas escolhas, envoltos à luz e sombras, que externam o sentir das sinapses em seu material mais bruto. “Um minuto é um espaço enorme de tempo”, diz. As palavras são sugestivas.
Bergman estuda cada detalhe reação do comportamento de suas personagens, até mesmo um tímido e submisso olhar de uma esposa, que dura sete anos, compactuando com as idiossincrasias do marido e assim permitindo a co-dependência da loucura atormentada por concretos e palpáveis fantasmas, estes a representação máxima e radical da psicopatia adormecida. “Velhos que passam a vida juntos ficam parecidos”, sussurra e expõe a desfuncionalidade do agir, voz essa que é desimportante, e a intimidade máxima do casamento, que não precisa dos hipócritas rituais da aparência, e que permite quebrar a ética sem moralidades. Liv Ullmann explicou em uma documentário póstumo sobre o filme que “se você convive com salgueiro que é louco e não se protege, acaba também enlouquecendo”.
“A Hora do Lobo” traz o atmosfera sobrenatural. Uma prosopopeia da mente que foca o medo na projeção. A câmera em super close invade a privacidade e atravessa o limite do respeito, facilitada pela ação da proibida leitura de um diário escondido. Ato transgressor, que inicialmente inocente e apaixonado pelo querer do conhecer o amor na totalidade, sem mistérios e como um livro aberto, transmutando purezas em complexas descobertas do compreender. É tudo uma epifania contemplativa.
Um pintor e sua esposa vão morar em uma ilha afastada de tudo e conhecem um misterioso grupo de pessoas que passam a trazer angústias ainda maiores à vida do casal, que já estava atormentado pelos pesadelos do pintor e por conflitos psicológicos. Durante a hora do lobo, entre a meia-noite e a aurora, ele conta para sua esposa suas memórias mais dolorosas, e começa a questionar a própria lucidez.
É também um filme de certa maneira autobiográfico, por se passar na Ilha de Fårö – lugar que o diretor viveu com Liv Ullmann, que estava grávida de verdade. E que influenciou tantos outros diretores, entre eles, Luis Buñuel, em “O Discreto Charme da Burguesia” (1972), o húngaro Bela Tarr (pela suspensão do tempo) e praticamente todos os filmes do dinamarquês Dogma Lars von Trier (indiscutível a semelhança dos planos e temas homenageados ao cineasta “tarado”, adjetivo dito no documentário “Trespassing Bergman”, de Hynek Pallas, Jane Magnusson). Mas o sueco talvez tenha bebido em Alfred Hitchcock na icônica cena de “Os Pássaros” (1963). E ou em “Repulsa ao Sexo” (1965), de Roman Polanski. Talvez. Maestrias são sempre reajustadas em novos modelos fílmicos.
“A Hora do Lobo” insinua dormências e falhas. A doença pode conotar inúmeros significados, e todos, pertinentes e condizentes cm a condição do sofrimento atual, subjetivo, individualizado e solitário. Que se perde na própria sensação, confundindo memórias, percepções e vivências do passado. A liberdade do artista conflita-se com o conservadorismo dos bons costumes (atiçando a nudez de um dos pecados capitais, à moda de outro filme Bergmaniano, “Monica e o Desejo”), trazendo ao espectador a vanguarda imagética da época (a câmera desmaterializa-se no próprio objeto filmado).
As reações violentas (e permitidas), por pseudo achismos de poder (de acreditar na possibilidade de vivenciar plenamente a crônica solidão – a briga do silêncio contra o autodestrutivo barulho), invertem os papéis: ovelha em lobo. irrita-se com as pressas verborrágicas dos outros e as necessidades urgentes de resoluções definidoras e financeiras. O jantar, por exemplo, de boas vindas, nos coloca como convidados, observando participativos o estranho e ilógico comportamento cruel e hostil dos outros, “monstros com tanto ódio nos olhos”, em seus shows de marionetes, entre penumbras, que traduzem a exatidão destes “Dráculas” que roubam a energia vital, alienando e abduzindo à maldade. É o limbo do julgamento final. O marido, fragmentado e desintegrado, fecha os olhos por já conhecer a tentação. A esposa, passiva e indecisa, esbugalhada, é dominada pelo conto da ópera “A Flauta Mágica”. Acontece o encantamento.
O preâmbulo de “A Hora do Lobo” dura quase quarenta e sete minutos num total de uma hora e vinte e sete minutos. O protagonista adentra no enlouquecer. O subconsciente se aflora na madrugada sem dormir. Potencializa lembranças dos castigos da infância, em fotografia estourada ao branco, que aborda outra imoralidade: a da pedofilia ou do abuso infantil. Sim, toda a obra resvala um alto teor peremptório sexual. O desejo e o prazer em muitas formas selvagens e primitivas, de permissão do viver.
“A Hora do Lobo” também se desenvolve pela influência da natureza. Ventos fortes e iminentes tempestades indicam invasões, o mal chegando, parecido com “Twin Peaks”, de David Lynch, provavelmente outro influenciado. Com mortos ressuscitados, vampiros fantasmas que não são impedidos pela luz do dia, limites transgredidos, espelhos estilhaçados, tudo quer nos dizer que os “canibais” (este que seria o título original – e que, por amor a Liv, mudou de nome) estão soltos e a nossa espreita.
Outra inovação é a interferência da metalinguagem. A atriz conta a história às lentes de uma câmera, que somos nós público, revelando mais um desrespeito: o diário publicado. No filme, realidade baseada e ficção desenhada misturam-se, libertando todos: nós e suas personagens presas nos próprios universos. É a luta pela sanidade. Pelo pouco que ainda resta. Bergman transmite verdade e realidade. Mas que verdade? Que realidade? Os atores são verdades vivas.