A Excêntrica Família de Gaspard
Animais em adestramento
Por Fabricio Duque
Durante o Festival Varilux de Cinema Francês 2018
Há filmes que transcendem suas próprias formas e reverberam a característica principal do cinema que é o sentir e retirar os espectadores deles mesmos, remetendo questionamentos não pretensiosos ao nos imergir no que exatamente precisamos no momento. “A Excêntrica Família de Gaspard”, é um desses exemplos. Sobre a inocente e não binária liberdade do ser no meio familiar.
Exibido no Festival Varilux de Cinema Francês 2018, o longa-metragem é sobre a expansão das experiências existenciais para com próximos, estes, que em família, potencializam a essência real, orgânica e naturalista do que é ser e de como se comportar. A excentricidade observada está nos olhos dos outros, intrusos como nós, que adentram em um espontâneo (e possível) mundo absurdo que humaniza o fantástico com o realismo do cotidiano.
Toda e qualquer família é assim. Envolta em suas particularidades (únicas e idiossincráticas), predileções, moralidades próprias e sem os limites padronizados dos alheios e limitados seres, que por não entender, acaba nivelando no campo da loucura sem noção. Nós, por sua vez, somos convidados a participar da intimidade dessa família, que passeia entre o absolutismo realista e naturalista com “recaídas” inserções de uma sensibilidade típica dos humanos, que cobra e que busca mudar o que não é “normal”.
É nesse universo primitivo, instintivo e sensorial que viajamos, como em um trem perdido a um portal desconhecido. Por cheiros “farejados”; toques afetuosos, carinhosos e amorosos (não necessariamente sexuais); ações-reações um tanto quanto estranhas e escatológicas (como sugar o sangue de um ferimento com a boca); e descobertas. Tudo e todos são elementos estimulados, permitidos, cúmplices, definidores no estágio de pertencimento, experimentados com incondicional paixão e vividos com maior controle, até mesmo a agressividade da irmã que se sente intimidada com o novo, com um possível novo participante.
É o medo do andante passante tornar-se permanente, modificando a estrutura já conhecida. É a perpetuação da nostalgia, do saudosismo temporal, que nunca se perdeu até o confronto com o agora, que chega pela verdade e pelo enérgico querer imediatista de se resolver anos em instantes. Como um ponto final no último resquício real da permanência do passado. Dar um novo começo. Ser pragmático. Abrir mão da utopia do estar para uma simples lembrança de um tempo que existiu. É terapia de choque que entende o “mau humor” e a criatividade das invenções (quadro para coçar as costas; paraquedas de rolhas de champanhe, limpador elétrico de umbigos), mas que tenta acelerar o processo do se acostumar.
Ao receber um convite inesperado para o casamento do pai, Gaspard (o ator Félix Moati) decide viajar até o zoológico administrado por sua família, depois de anos afastado. Ele pede para Laura (Laetitia Dosch), uma jovem, acompanhá-lo no evento, como se fosse sua namorada. Por cinquenta euros por dia. Mas o que promete ser uma reunião familiar conturbada para Gaspard é, na realidade, uma oportunidade única de reviver os momentos incríveis de sua infância, ao lado dos animais que o viram crescer. São animais em habitat natural, tentando sobreviver ao mundo predador lá fora. “Zoo é cultura, é história, é ligação com a seleção natural, é a história das formas”, resume-se por uma narrativa meio videoclipe, meio música a la Sigur Ros, meio pirotecnia imagética.
Dirigido pelo francês Antony Cordier (de “Para Poucos”), “A Excêntrica Família de Gaspard” busca a ambiência das realizadoras Christine Pascal e Catherine Breillat, tanto que o filme é dedicado a elas, mas também encontramos referências, algumas explícitas, outras insinuações, à temática de “Capitão Fantástico”, de Matt Ross, a uma estrutura de “Compramos um Zoológico”, de Cameron Crowe, e um que livre de “Band a part”, de Jean-Luc Godard, pela dança.
É sobre o confronto perspicaz (não impositivo) de hipócritas percepções mais maldosas e puritanas dos outros. Contra a inocência dessa família, selvagem e que perpetua um bucolismo contemporâneo. Que incomoda quem é “a favor da “natureza”. “Todas as irmãs são apaixonadas pelo irmão mais velho”, defende-se.
Aqui é sobre recuperar a inocência da infância, tempo que ainda não se foi consumido e abduzido por surreais e inatingíveis regras da fase adulta em um hostil mundo que nos limitam e nos engessa a cada segundo de nosso dia. “A Excêntrica Família de Gaspard” é sobre o ser. Apenas. De não perguntar os porquês. Sobre as entrelinhas das formas, como capítulos de um livro da própria vida. Sobre a festa continuar. Sobre mudanças. Sobre Crescer. Com ou sem troca de casamentos. Com ou sem tatuagem que simboliza a aliança matrimonial. Um filme que nos estimula o desacelerar vivendo e analisando a vida de outros personagens ficcionais que são mais reais do que muitos existentes em nosso próprio caminho. E que nos faz inclusive recuperar aquela paixão incondicional sem ressalvas que tínhamos como jovens passionais, que escutam “R U Swimming?”, de Mademoiselle K; e “Distance”, de Thylacine.